sexta-feira, 16 de outubro de 2015

PONTO DE SITUAÇÃO




(Algumas reflexões para tentar ver algo para além da poeira)

A última semana foi de imensa poeira no ar, essencialmente provocada pela sistemática contrainformação em torno dos preliminares negociais para a formação de um governo. Este, qualquer que ele seja, vai penar em função de uma situação da economia portuguesa que está muito longe de corresponder ao retrato que a maioria tentou construir ao longo da campanha eleitoral e do período que a antecedeu. Globalmente, a comunicação social já tinha pendido para o lado de acolher sem escrutínio a reconstrução artificial da situação pós resgate que a maioria ardilosamente concebeu. Essa tendência de opinião já formada, naturalmente, amplificou a derrota de Costa e do PS face às suas expectativas iniciais. E repercute-se agora em todas as formas de poeira lançada para a interpretação dos preliminares da formação de um novo governo.

Mas se deixarmos assentar alguma dessa poeira (a visão fica sempre turva porque nova poeira está sistematicamente a ser lançada para o ar) é possível alinhar algumas ideias-força.

Primeiro, quem ganhou as eleições, embora com uma vitória envenenada que pode ser inclusivamente de Pirro, foi a coligação de Passos e Portas. A legitimidade que a coligação tem para a formação de um governo é inquestionável. Em torno desta ideia inquestionável, poeira grossa e diversificada foi lançada sobre a opinião pública. Pressiona-se inqualificavelmente Costa e o PS para um acordo com a maioria. Repare-se que nem sequer se realiza uma pressão conjunta sobre a maioria e PS do tipo “entendam-se”. Não o que é pretendido é que o PS alinhe ao centro e viabilize a governação da maioria. Ora, se é legítimo considerar que a maioria deve tentar formar governo, é também legítimo e igualmente legítimo o PS rejeitar esse acordo, já que se apresentou ao eleitorado para impedir que a governação da maioria persistisse. Esta igual legitimidade da maioria querer governar e do PS rejeitar um acordo de governo não se confunde com o que uma grande parte da comunicação social tem tentado explorar e que consiste em concluir que um governo chefiado por Passos é menos frágil politicamente do que um outro chefiado por Costa. Por outras palavras, podem criar-se todas as atoardas possíveis de que Costa quer chegar ao governo através de uma derrota. Das atoardas lancinantes vindas do Observador não vale a pena falar já que são teleguiadas. A acusação de Manuel Ferreira Leite de que Costa protagonizará um golpe de Estado pode provocar mais danos, sobretudo porque Costa invocou o seu nome várias vezes para dar conta de que haveria um outro PSD com quem se poderia trabalhar.

Por conseguinte, vamos por partes. Se é igualmente legítimo o PS considerar que não tem condições para um acordo com a maioria, não só em função da dinâmica da campanha eleitoral, mas sobretudo pelo teor e estilo da governação da maioria, então o Presidente da República terá de considerar sequencialmente a impossibilidade da maioria conseguir um acordo parlamentar. Assim sendo, cabe ao Presidente da República avaliar da consistência do que Costa tem para propor em termos de apoio estável a nível parlamentar e decidir se o indigita para a formação de governo ou se deixa o atual governo a marinar em gestão até que o novo Presidente esteja em condições de convocar novas eleições. Como a recusa do PS do acordo com a maioria é legítima, depreende-se que os que acusam António Costa de golpe de estado prefeririam que o Presidente da República conduzisse o país a um longo interregno de estagnação política até à realização de novas eleições. Exemplar forma de defender a estabilidade política e os interesses do país.

Segundo, uma fonte de poeira permanente resulta do modo como tem sido coberto o diálogo político do PS à sua esquerda com o PCP e o Bloco de Esquerda. Uma grande parte do pensamento produzido pressupõe que à esquerda do PS não há movimento, só fossilização. E fazem-no porque dá jeito para defender e ocultar a enorme cumplicidade que a social-democracia e socialismo democrático europeus têm no descalabro europeu. Mas a Grécia avisou que a fossilização pode ser um mito, sobretudo porque o contexto das opções mudou radicalmente. E a Espanha indiretamente ajudou. Nem o Bloco nem o PCP estão interessados na emergência em Portugal de fenómenos do tipo PODEMOS. Portanto mexem-se. Não tenho informação privilegiada nesta matéria, mas tudo indica que no diálogo com o PCP e com o Bloco de Esquerda o que estará em cima da mesa é o programa económico do PS, vulgo programa Centeno. Não sei se é efetivamente assim ou não, nem interessa para o caso. Podem o Bloco e o PCP propor medidas similares com o mesmo impacto orçamental. Claro que podem e nada melhor do que o próprio António Costa para avaliar se o programa é desvirtuado ou não. E se for o programa económico do PS a espinha dorsal do diálogo à esquerda onde é que está a tão propagada infidelidade do PS ao eleitorado que nele votou? Não entendo onde possa estar. Mas é este acordo parlamentar estável e assegura uma governação desejavelmente para a legislatura? Só os textos dos acordos finais o permitirão escrutinar. E cabe ao presidente da República explicar aos portugueses se considera esses eventuais acordos estáveis ou frágeis e com isso dignificar a parte final do seu mandato. Não me interessa antecipar se esses acordos virão a existir e, nesse caso, se Cavaco os achará credíveis. O que terá de assegurar é explicar com muita clareza se sim ou não os acha credíveis para fundamentar a sua responsabilidade histórica nesta matéria. Admitamos o cenário positivo: existem e o presidente considera-os estáveis e credíveis. Onde é que estará a não legitimidade democrática e constitucional?

Terceiro, estamos a falar de margens de manobra muito apertadas. Não tenho sobre isto a mínima dúvida. E entramos decisivamente no difícil caminho das escolhas públicas centrais, onde estão concentradas todas as minhas dúvidas e já por repetidas vezes chamei aqui a atenção para a extrema dificuldade da esquerda em geral assumir tais escolhas. Na minha modesta interpretação, numa hipótese de governação à esquerda considerada credível pela presidência, vão perfilar-se imensas escolhas. Por exemplo, e neste caso um exemplo meramente académico, vai colocar-se a escolha entre a tentação de fazer reverter a privatização da TAP e a manutenção de algumas apostas sociais. Está a esquerda preparada para ao abrigo dessas escolhas deixar cair algumas das suas bandeiras para defender alguns redutos sociais? Esta para mim é que é a grande questão, sobretudo porque as margens de manobra para fazer existem mas são apertadas. E os desafios da transformação estrutural da nossa base produtiva não desapareceram como a maioria nos fez ardilosamente crer.

Espero que as cenas dos próximos capítulos tragam um ar mais respirável e que nos permitam guardar a máscara.

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