(Algumas
reflexões para tentar ver algo para além da poeira)
A última semana foi de imensa poeira no ar, essencialmente provocada pela
sistemática contrainformação em torno dos preliminares negociais para a
formação de um governo. Este, qualquer que ele seja, vai penar em função de uma
situação da economia portuguesa que está muito longe de corresponder ao retrato
que a maioria tentou construir ao longo da campanha eleitoral e do período que
a antecedeu. Globalmente, a comunicação social já tinha pendido para o lado de
acolher sem escrutínio a reconstrução artificial da situação pós resgate que a
maioria ardilosamente concebeu. Essa tendência de opinião já formada,
naturalmente, amplificou a derrota de Costa e do PS face às suas expectativas
iniciais. E repercute-se agora em todas as formas de poeira lançada para a
interpretação dos preliminares da formação de um novo governo.
Mas se deixarmos assentar alguma dessa poeira (a visão fica sempre turva
porque nova poeira está sistematicamente a ser lançada para o ar) é possível
alinhar algumas ideias-força.
Primeiro, quem ganhou as
eleições, embora com uma vitória envenenada que pode ser inclusivamente de
Pirro, foi a coligação de Passos e Portas. A legitimidade que a coligação tem
para a formação de um governo é inquestionável. Em torno desta ideia
inquestionável, poeira grossa e diversificada foi lançada sobre a opinião
pública. Pressiona-se inqualificavelmente Costa e o PS para um acordo com a
maioria. Repare-se que nem sequer se realiza uma pressão conjunta sobre a
maioria e PS do tipo “entendam-se”. Não o que é pretendido é que o PS alinhe ao
centro e viabilize a governação da maioria. Ora, se é legítimo considerar que a
maioria deve tentar formar governo, é também legítimo e igualmente legítimo o
PS rejeitar esse acordo, já que se apresentou ao eleitorado para impedir que a
governação da maioria persistisse. Esta igual legitimidade da maioria querer
governar e do PS rejeitar um acordo de governo não se confunde com o que uma
grande parte da comunicação social tem tentado explorar e que consiste em
concluir que um governo chefiado por Passos é menos frágil politicamente do que
um outro chefiado por Costa. Por outras palavras, podem criar-se todas as
atoardas possíveis de que Costa quer chegar ao governo através de uma derrota.
Das atoardas lancinantes vindas do Observador não vale a pena falar já que são
teleguiadas. A acusação de Manuel Ferreira Leite de que Costa protagonizará um
golpe de Estado pode provocar mais danos, sobretudo porque Costa invocou o seu
nome várias vezes para dar conta de que haveria um outro PSD com quem se
poderia trabalhar.
Por conseguinte, vamos por partes. Se é igualmente legítimo o PS considerar
que não tem condições para um acordo com a maioria, não só em função da
dinâmica da campanha eleitoral, mas sobretudo pelo teor e estilo da governação
da maioria, então o Presidente da República terá de considerar sequencialmente
a impossibilidade da maioria conseguir um acordo parlamentar. Assim sendo, cabe
ao Presidente da República avaliar da consistência do que Costa tem para propor
em termos de apoio estável a nível parlamentar e decidir se o indigita para a
formação de governo ou se deixa o atual governo a marinar em gestão até que o
novo Presidente esteja em condições de convocar novas eleições. Como a recusa
do PS do acordo com a maioria é legítima, depreende-se que os que acusam
António Costa de golpe de estado prefeririam que o Presidente da República
conduzisse o país a um longo interregno de estagnação política até à realização
de novas eleições. Exemplar forma de defender a estabilidade política e os
interesses do país.
Segundo, uma fonte de poeira
permanente resulta do modo como tem sido coberto o diálogo político do PS à sua
esquerda com o PCP e o Bloco de Esquerda. Uma grande parte do pensamento
produzido pressupõe que à esquerda do PS não há movimento, só fossilização. E
fazem-no porque dá jeito para defender e ocultar a enorme cumplicidade que a
social-democracia e socialismo democrático europeus têm no descalabro europeu. Mas
a Grécia avisou que a fossilização pode ser um mito, sobretudo porque o
contexto das opções mudou radicalmente. E a Espanha indiretamente ajudou. Nem o
Bloco nem o PCP estão interessados na emergência em Portugal de fenómenos do
tipo PODEMOS. Portanto mexem-se. Não tenho informação privilegiada nesta
matéria, mas tudo indica que no diálogo com o PCP e com o Bloco de Esquerda o
que estará em cima da mesa é o programa económico do PS, vulgo programa
Centeno. Não sei se é efetivamente assim ou não, nem interessa para o caso.
Podem o Bloco e o PCP propor medidas similares com o mesmo impacto orçamental.
Claro que podem e nada melhor do que o próprio António Costa para avaliar se o
programa é desvirtuado ou não. E se for o programa económico do PS a espinha
dorsal do diálogo à esquerda onde é que está a tão propagada infidelidade do PS
ao eleitorado que nele votou? Não entendo onde possa estar. Mas é este acordo
parlamentar estável e assegura uma governação desejavelmente para a legislatura?
Só os textos dos acordos finais o permitirão escrutinar. E cabe ao presidente
da República explicar aos portugueses se considera esses eventuais acordos
estáveis ou frágeis e com isso dignificar a parte final do seu mandato. Não me
interessa antecipar se esses acordos virão a existir e, nesse caso, se Cavaco
os achará credíveis. O que terá de assegurar é explicar com muita clareza se
sim ou não os acha credíveis para fundamentar a sua responsabilidade histórica
nesta matéria. Admitamos o cenário positivo: existem e o presidente
considera-os estáveis e credíveis. Onde é que estará a não legitimidade
democrática e constitucional?
Terceiro, estamos a falar de
margens de manobra muito apertadas. Não tenho sobre isto a mínima dúvida. E
entramos decisivamente no difícil caminho das escolhas públicas centrais, onde
estão concentradas todas as minhas dúvidas e já por repetidas vezes chamei aqui
a atenção para a extrema dificuldade da esquerda em geral assumir tais
escolhas. Na minha modesta interpretação, numa hipótese de governação à
esquerda considerada credível pela presidência, vão perfilar-se imensas
escolhas. Por exemplo, e neste caso um exemplo meramente académico, vai
colocar-se a escolha entre a tentação de fazer reverter a privatização da TAP e
a manutenção de algumas apostas sociais. Está a esquerda preparada para ao
abrigo dessas escolhas deixar cair algumas das suas bandeiras para defender
alguns redutos sociais? Esta para mim é que é a grande questão, sobretudo
porque as margens de manobra para fazer existem mas são apertadas. E os
desafios da transformação estrutural da nossa base produtiva não desapareceram
como a maioria nos fez ardilosamente crer.
Espero que as cenas dos próximos capítulos tragam um ar mais respirável e
que nos permitam guardar a máscara.
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