(Ou como é
possível na agitação política dos tempos que correm encontrar sinais de que as
eleições clarificam sempre…)
Estou entre os que consideram que a consulta democrática é sempre
clarificadora, por mais embustes e manipulações que precedam a sua realização.
Por isso, ainda um pouco atordoado pela sequência infernal de acontecimentos e
pela cacofonia estridente que nos rodeia, dou comigo a pensar que nada será
diferente a partir do momento em que a consulta popular, embora dando a vitória
à coligação, mostrou também aos diretórios do PS, do PCP e do Bloco de Esquerda
que não queriam que a coligação governasse, pelo menos do mesmo modo como o fez
nos últimos 4 anos. E uma convergência muito particular de registos aconteceu:
por um lado, António Costa embora com os seus objetivos derrotados nas urnas e
por isso fragilizado sobretudo para dentro do seu próprio partido mostrou à
evidência que é atualmente a única personagem política da esquerda que pode
aspirar a agitar as hostes dessa mesma esquerda, levando-a a discutir aspetos
concretos de governação; por outro lado, PCP e Bloco de Esquerda parece que
finalmente compreenderam que o seu eleitorado de protesto aspira a algo mais e
que ele não aceitará que a inércia determine que o posicionamento político
dessas forças conduza a que a maioria governe outra vez e do mesmo modo.
Isto não significa obviamente que esteja a apostar na elevada probabilidade
de formação de um governo de esquerda com maioria parlamentar. O que estou a
dizer é que nada será igual nesta matéria. O paradoxo da situação é que,
perdendo nas urnas, António Costa terá conseguido levar à prática a sua ideia
repetidamente reiterada no Quadratura do Círculo de que era necessário retirar
o PCP e o Bloco de Esquerda, alargando o espectro de governações. É que neste
caso o voto de protesto não foi apenas de protesto. Foi mais do que isso. Foi a
revelação de uma vontade de que a maioria não poderia continuar a governar. E
as direções políticas do PCP e do Bloco compreenderam essa situação. Aliás,
tive o cuidado de assinalar o tom paradoxalmente circunspecto com que Mariana
Mortágua e Marisa Matias (Bloco) comentaram na noite eleitoral o êxito da sua
força política ao mesmo tempo que confirmavam a permanência da direita no topo
das preferências eleitorais dos portugueses. Nesse momento, aquelas duas
promessas da política portuguesa compreenderam que nada seria igual a partir
daquela noite.
A construção de uma alternativa relativamente estável em torno de uma
maioria de esquerda, incluindo a esquerda mais radical, é coisa que levará
tempo e não se concretizará provavelmente num período mesmo que alargado para a
constituição de um governo. Mas o importante foi tornar público que isso não
era uma impossibilidade e vem ao encontro do que sempre pensei: essa
alternativa a ser construída não resultaria nunca de uma nova força política
(que me desculpem Rui Tavares e o Jorge Bateira). O processo teria sempre de
acontecer na sequência de um contexto político mutável e das suas consequências
sobre as forças políticas que podem protagonizar essa convergência.
Bastou a confirmação de que essa aproximação não era impossível para que os
demónios da direita se incendiassem e o reacionarismo mais primário viesse ao
de cima, com relevo para a verdadeira dimensão do CDS que tem a sua costela
democrática colada com cuspe. Em muita daquela gente, democracia equivale a
pose que não resiste à mínima pressão. Até António Lobo Xavier ontem no
Quadratura do Círculo, rendido aos seus interesses de classe, precisou de
invocar a idade para se demarcar de Jorge Coelho. Dizia ele que compreendia que
para a geração de Jorge Coelho o reconhecimento ao PCP pelo contributo para o
derrube do fascismo salazarista era lógico e historicamente justificável. Mas
que para a geração dele a luta tinha sido outra, a da luta contra o risco de
aplicação em Portugal de uma democracia popular construída em torno da
hegemonia do PCP e que por isso não podia colocar no mesmo prato da balança “a
maioria + PS” e “PS + Esquerda radical”. Este argumento de ALX é um argumento
de derrota anunciada. Quando ele coloca a questão no plano etário, também
poderia dizer-lhe que para as gerações mais novas do que ele essas diatribes do
PCP e da extrema-esquerda em Portugal ou pertencem simplesmente à história ou
ninguém delas se recorda.
E também após o ato eleitoral em Portugal é hoje percetível que a
democracia está condicionada pelo afunilamento do projeto europeu e sobretudo
pela indecente adesão da social-democracia europeia, tão bem representada no
franjinhas do Eurogrupo, ao TINA. Uma das condições inquestionáveis para que um
simples simpatizante do PS como eu continue a depositar esperanças numa força
política que, estou certo, irá atravessar nos próximos tempos uma profunda
convulsão política, é o seu compromisso para que na medida das suas
possibilidades (condicionadas pela dimensão do país) não entregue os pontos na
frente europeia. É preciso continuar a desmontar o aperto democrático a que a
União Europeia nos está a conduzir e olhar as eleições europeias com mais
seriedade e poder de combate. E não são forças políticas apenas que podem
ajudar a ir montando essa desconstrução. Há muito pensamento independente por
esse mundo fora e sobretudo do lado de lá do Atlântico que pode ser um auxiliar
precioso dessa batalha. É por isso que acaba por ser falsa e enganosa a ideia
de que existe um limite inultrapassável entre o PS de um lado e o PCP e o Bloco
do outro em matéria europeia. O PS não tem de renunciar aos compromissos
europeus para poder ser crítico da construção europeia atual. Pode por exemplo
renunciar de vez ao modelo de decisões europeias sem respaldo e consulta democrática
dos parlamentos e populações. Pode também continuar a combater a política
macroeconómica europeia de sentido único, profundamente criticada a nível
internacional, construída em torno das posições alemãs que não são as mais
apropriadas para enfrentar o contexto de estagnação estrutural em que as
economias de mercado estão mergulhadas. Estas questões interessam às três
forças políticas e não implicam que o PS se confunda com a ideia de
anti-europeísmo.
O que parece evidente é que a maioria e os seus apaniguados usam hoje a
questão europeia como um instrumento de condicionamento poderoso. O seu
europeísmo é cínico e meramente instrumental. Por mais emergente e sólida que
seja a ideia do muro europeu mais isso interessa à maioria. Ora como a história
nos ensinou não há muros que resistam à força da história.
Tudo isto é pertinente ainda que o escreva antes de conhecer os resultados
do encontro entre a maioria e Costa e ainda também antes do encontro de
segunda-feira entre Costa e o Bloco.
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