terça-feira, 13 de outubro de 2015

CHAMAM-LHE DEMOCRACIA!



O último escrito de José Manuel Fernandes (JMF) no seu “Observador” (“Este homem não é de confiança”) é uma cristalina demonstração de desonestidade intelectual, de desvario insultuoso e de desespero existencial. Já não o víamos assim, i.e., tão assertivo nas suas mentirosas exibições de dogmatismo ideológico e autoritarismo declarativo desde os tristes tempos da invasão do Iraque. Sendo que só vale a pena perder algum tempo em torno dos traumas e vícios de JMF na medida em que estamos perante um homem culto e um profissional competente, perante alguém capaz por isso de liderar posicionamentos e de agilizar argumentos, através deles influenciando necessariamente muitos dos seus mais incautos semelhantes.

É sempre recomendável começarmos pelo princípio e pelos princípios. Não querendo ir longe de mais nesta(s) matéria(s), sempre direi que só no quadro da democracia constitucional que nos rege é que encontraremos substância suscetível de atribuir justeza (ou falta dela) aos pontos de vista que cada um queira apresentar. São estas, e não aquelas que JMF acusa António Costa de ter mudado, as únicas regras do jogo possíveis e objetivas; e elas são claras como água na combinação entre consulta eleitoral, avaliação subsequente dos seus resultados e correspondente eficácia governativa em termos parlamentares. Dito muito singelamente: os eleitores votam em partidos e programas, sendo ademais esclarecidos por debates e declarações complementares, o Presidente da República tem em conta o conjunto dos votos expressos (e não expressos) e à Assembleia da República cabe a palavra final e soberana através da formação das maiorias que os partidos representados nela consigam gizar. É, pois, completamente falaciosa aquela ideia de que “os portugueses disseram que queriam isto ou aquilo” porque o que verdadeiramente cada português disse foi qual o partido que preferia escolher e nunca qual a hipotética solução de governo que assim estaria a pretender promover.

Vamos então ao tratamento estrito do assunto que tanto vem afligindo quase tudo quanto neste país é jornalista ou comentador (o controlo do dinheiro pode muito, a acomodação ao “sempre assim foi” é tão preguiçosamente apelativa e a incompetência mostra-se gritantemente imperativa), já para não falar dos políticos que, à direita e sob o guarda-chuva protetor de Cavaco, se mostram tão indignados ou revoltados com um eventual governo do PS quanto tivessem sido para sempre divinamente ungidos para efeitos governativos (mesmo sem lograrem as exigidas maiorias parlamentares).

Nos planos jurídico-constitucional e factual, a questão de um eventual governo do PS pode ser encarada sob quatro perspetivas bem diversas, todas convergentes.
1. A primeira é a de que, formalidades à parte, não poderá deixar de ter legitimidade democrática o governo que se apresente perante o Parlamento e nele obtenha o devido apoio maioritário (ou a devida não rejeição) – seja um governo da coligação que o consiga, um governo do PS que o consiga ou qualquer outro governo hoje não antecipável que o consiga.
2. A segunda é a de que, como aliás dois assessores de Cavaco relembraram com recurso a variados países europeus num artigo para o “Expresso Diário”, não é de todo verdade que (cá ou nessa Europa que quando interessa nos serve de orientação) a formação de um governo tenha de passar obrigatoriamente pela formação mais votada em eleições sob pena de se estarem a defraudar as expectativas dos eleitores – um governo do PS com apoio parlamentar do PCP e do BE é, portanto, inteiramente legítimo e não constitui um qualquer “golpe de Estado” contra a democracia, como tem sido afirmado por gente supostamente responsável mas que primordialmente entende que o jogo democrático se deve subordinar aos interesses e opções que assume.
3. A terceira é a de que também não releva o facto de não se terem enfatizado devidamente em fase pré-eleitoral todos os possíveis cenários pós-eleitorais – só perante o resultado concreto estes podem adquirir peso e viabilidade, embora no caso seja de sublinhar que Costa disse bem alto que não se quereria coligar com esta direita, que não aceitava as implicações do conceito de “arco da governação” e que valorizava muito a sua experiência de entendimentos à esquerda na Câmara de Lisboa (para bom entendedor...); eu próprio o escrevi neste espaço (post de 26 de setembro) em face da notícia de primeira página do “Expresso” que abaixo novamente reproduzo.
4. A quarta, e última, é a de que o atual puritanismo da coligação de direita não chega para esconder os sucessivos e dramáticos apelos à maioria absoluta por parte de muitos dos seus dirigentes como forma de obstar ao perigo de formação de um governo do PS com as forças da chamada esquerda radical, hipótese que Costa nunca quis negar expressamente a despeito do preço eleitoral que tal notoriamente lhe acarretava. Onde reside, pois, o estrabismo de Costa que a imagem mais abaixo quis por em evidência?


(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Passemos agora, e enquanto aproximação final, à análise da questão propriamente dita. Até agora, o que Costa efetivamente fez foi cumprir o mandato do seu partido no sentido de estudar a situação em presença com todas e cada uma das forças políticas representadas na A.R., não lhe podendo ser assacadas culpas pela forma mais aberta, mais preparada ou mais arrogante com que cada uma o recebeu. Por outro lado, o que Costa disse na noite eleitoral – e parece querer cumprir, e bem – foi que não faria “coligações negativas”, i.e., que não inviabilizaria um governo da coligação sem ter uma alternativa real ao mesmo. E é de sublinhar, também, que JMF só pode estar a fingir que não sabe o que representa uma coligação entre partidos, ou seja, que está essencialmente em causa uma negociação em que a criada relação de forças eleitoral determine a necessidade de cedências diferenciadas de uns e dos outros (o que significa tudo menos “mandar às urtigas o ‘programa com as contas feitas’”) – no caso, o PCP e o Bloco já declararam que abdicavam de forçar no sentido das suas posições menos pró-europeias (saída ou não do Euro, sujeição ou não ao Tratado Orçamental) ou em relação à renegociação da dívida pública em benefício de lograrem a constituição de um governo adequado ao que entendem ser as prioridades essenciais da atual fase da vida do País (Catarina falou, em termos sinteticamente liminares, na defesa do emprego, dos salários e das pensões). Acresce ainda que JMF insiste em apresentar Costa como um misto de inocência e burrice ao por a tónica em que “a única coisa que o PCP garantiu foi que não votaria uma moção de rejeição apresentada pela PSD e pelo CDS” ou que “o PS pode ser Governo, mas ficou sem saber se conseguirá governar” – mas alguma vez o PS disse que assim seria, que não teria em atenção tempos e conteúdos mínimos de governabilidade, que não requereria apoio garantido a um ou dois orçamentos, nomeadamente e pelo menos?

Aqui chegado, não quero deixar de emitir mais frontalmente a minha posição pessoal sobre a matéria. E ela desdobra-se pelos seguintes cinco tópicos:
1. o sistema é o sistema e nada indica que o mesmo aceite sem resistências dificilmente ultrapassáveis a multiplicação de ruídos no seu seio – neste quadro, as gigantescas fragilidades estruturais da economia e da sociedade portuguesas e os enormes abalos que atravessam o sistema financeiro português dificultam, e muito, que olhemos com mínimos de tranquilidade para uma solução à esquerda que não tivesse por base um PS mais forte e unido;
2. reconheço, todavia, que é tempo de virar à página dos argumentos quadragenários em torno do PREC e da Fonte Luminosa, assim se rompendo também com uma democraticamente inconcebível limitação dos possíveis em termos de soluções governativas em Portugal;
3. parece-me, ainda, que a instituição PS no seu todo não está capacitada para internalizar um governo à esquerda e essa é a esperança principal de JMF quando conclui o seu texto dizendo que “falta ainda ver se esse mesmo PS consente nesta deriva autofágica” – o PS dos egos, o PS dos interesses e o PS politiqueiro e sem densidade cultural e ideológica poderão levar às últimas consequências (fratura) as divergências (chamemos-lhes assim para facilitar) em presença;
4. entendo que no momento atual António Costa é o melhor secretário-geral possível para um PS a braços com esta autêntica quadratura do círculo, razão pela qual só posso desejar-lhe doses significativas de energia e sorte – e, em tal contexto, esperar e confiar na sua avaliação da boa fé com que o PCP e o Bloco venham a entrar neste processo, independentemente de ele não dever ainda assim prescindir de um acordo explícito e transparente junto da opinião pública nacional quanto à solidez das garantias reciprocamente obtidas e dadas;
5. sobre Passos e Portas, e alguns dos piores dos seus próximos (entre aprendizes fora de tempo do estalinismo como Marco António ou Nuno Melo e humildes servidores do dono como Montenegro ou Mota), não deposito quaisquer ilusões numa reconversão regeneradora do seu “troca-tintismo” mas julgo que o susto por que estarão a passar neste momento (em contraponto às jubilosas caras e palavras da noite eleitoral) os poderá levar a terem outros cuidados (mesmo que encobertos ou disfarçados) em outras ocasiões democráticas que se lhes venham a deparar. 

Quanto a prognósticos, aceito a ideia de que só no fim do jogo. Não prescindo, contudo, dos palpites e, não querendo arriscar muito nem deixar de admitir que a cabeça me condiciona uma adesão plena a uma sinuosa via que siga deliberadamente pela esquerda, tenho tendência a considerar que possa vir a ganhar prevalência o acobardamento das elites e a lassidão da maioria dos cidadãos em relação a soluções não convencionais. Mas lá que quase tudo neste País e nesta Europa reclama pungentemente por opções e ações que pudessem contribuir para que a dignidade das pessoas e a soberania nacional voltassem a ocupar o inalienável lugar que lhes deveria caber...

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