(Vem-me à memória
uma canção de Sérgio Godinho, tem o acesso bloqueado)
Como diria Pacheco Pereira quem semeia ventos colhe
tempestades. Sim, neste caso, o semear ventos é conduzir uma política económica
externa de modo errático, primeiro em função dos interesses que se movimentaram
no processo de privatizações, depois em termos da vulnerabilidade em que se
deixou cair o país em relação aos poderes angolanos. O ministro Portas
esmerou-se neste processo e os poderosos escritórios de advogados fizeram o
resto.
Estamos assim conduzidos a uma política externa
bloqueada. E essa é uma pesada herança com que um novo governo, qualquer que
ele seja, terá de se confrontar. Senão vejamos.
Primeiro, por efeito do síndroma do bom aluno europeu, a
posição de Portugal está frágil como nunca no xadrez da União Europeia.
Abdicámos objetivamente de querer aproveitar o impulso de Matteo Renzi em
Itália para ter uma palavra a dizer na procura de novos equilíbrios na relação
de forças intra União Europeia. Até o próprio ministro das finanças alemão Schäuble
confirmou que a peça da ministra das finanças Maria Luís tinha alinhado sem
hesitações com o cenário de Grexit mesmo que temporário. Machete andou sempre a
apanhar bonés, com aquele ar irritante de eternamente aborrecido por alguém o
ter obrigado a trocar o conforto das pantufas ou dos campos de golfe pela
diplomacia externa. É patético como alguma réstia de social-democracia que a
personalidade podia invocar está hoje perdida no caixote do lixo da
irrelevância.
Segundo, a criminosa pressa com que as privatizações
foram concebidas (uma matéria em que a fome ideológica do governo se junta à
vontade de comer da Troika) determinou que elas fossem concretizadas sem uma
adequada avaliação dos constrangimentos futuros em termos de política externa.
Os grandes escritórios de advogados jogaram nessa pressa e a duplicidade do
estatuto de algumas consultoras, trabalhando para o governo e para os grupos
interessados nessas privatizações, tiraram partido, habilmente, desse contexto. De
resultados erráticos até à subserviência ao capitalismo de Estado chinês,
escolham qual é o resultado pior.
Terceiro, a política externa em torno da CPLP é um
desastre. E não apenas desde a adesão da Guiné Equatorial e a humilhação a que
Cavaco Silva foi submetido em Dili, Timor Leste. Face à dimensão de aposta de
investimento público que o governo português está disposto a libertar face à
presença de um Brasil, com Dilma a não esconder a irrelevância que dedica a
Portugal, a presença de Portugal na CPLP é equivalente a um menino de bibe a
querer participar em jogos de adultos. Uma desgraça anunciada e só uma réstia
de afetividade vai resistindo, mas que se apagará com o tempo, ou seja, com a
morte dos seus protagonistas.
Quarto, a vulnerabilidade face a Angola foi sendo
progressivamente acumulada. Por norma e ética de pensamento, não costumo
dissertar sobre universos sobre os quais a minha perceção não seja física e de
conhecimento local. Mas do ponto de vista de caso de estudo, posso até
compreender que a acumulação primitiva de capital numa economia como Angola que
pretende empresarializar-se e abrir-se à economia de mercado tenha de partir de
uma distribuição não canónica da riqueza por protagonistas putativamente com capacidade
para gerar um processo de desenvolvimento empresarial e reinvestimento de
ganhos iniciais. Sabemos hoje que a transição para a economia de mercado em
algumas economias de leste, em que essa distribuição inicial de riqueza não foi
tão gerida no plano político, gerou processos quase incontroláveis de
“mafiasização” da economia. Sabe-se, por exemplo, como no processo russo as
oligarquias em torno de Yeltsin foram violentamente substituídas pelas
oligarquias abençoadas por Putin. Em Angola, o que para mim é lamentável não é
essa acumulação primitiva, é a sua reprodução e afunilamento continuados, sem
que se vislumbre qualquer potencial ou sinal de abertura para processos
redistributivos no interior da sociedade angolana.
O aperto em que a economia portuguesa mergulhou na
sequência de um processo de resgate aplicado sem cuidar dos custos da
estagnação europeia e a sobre-destruição do mercado interno levou inúmeras
empresas portuguesas a procurar no mercado angolano a fonte de escoamento da
sua capacidade produtiva não utilizada. Quanto mais forte for essa presença no
mercado angolano enquanto simples escoamento de capacidade produtiva não
instalada, maior a vulnerabilidade desse investimento. Praticamente em
simultâneo, as fortunas angolanas, geradas em função da referida acumulação
primitiva politicamente forjada, em vez de utilizarem os frutos dessa partilha
no reinvestimento em Angola, começaram a ocupar investimentos-chave em
Portugal, na banca, na informação, e até na indústria estruturante. Ou seja, diversidade
suficiente de interesses para colocar em sentido o governo, apavorado pelas
consequências de qualquer melindre diplomático interpretado como tal pelas
autoridades angolanas. Chamemos-lhe síndroma do colonizador, captura da
política externa pela economia ou simplesmente acobardamento político. Face a
Angola, as autoridades portuguesas deixaram apresar-se pela projeção da
vulnerabilidade económica.
Já não falo da tenda gigante de Khadafi em Lisboa num
outro efeito de sedução pelo potencial das receitas de petróleo. Neste caso, a
implosão da Líbia encarregou-se de desfazer quaisquer veleidades.
Política externa bloqueada porque não se vislumbra
qualquer tentativa séria de escapar a esta camisa de forças. Ter a diplomacia
externa resumida a uma diplomacia económica de cunho instrumental imediato é um
sinal de profunda debilidade. E nem sequer essa diplomacia económica foi capaz
de suscitar em Portugal uma discussão política sobre os eventuais efeitos para
Portugal de uma eventual concretização da parceria económica transatlântica
entre a União Europeia e os Estados Unidos.
Por toda esta trajetória de degradação da representação
dos interesses portugueses no estrangeiro, de que a mísera afluência às urnas
nos círculos eleitorais no estrangeiro é talvez o melhor indicador de demissão
que conheço, Portugal está hoje privado de tomar uma posição política sobre um
caso de direitos humanos em Angola que envolve um cidadão que também é
português. A captura da Voz política do país no exterior por uma diplomacia
económica de trazer por casa é uma das tragédias a que este governo ainda em
funções nos conduziu. Talvez a responsabilidade tenha começado antes e os
próprios governos de Sócrates e outros que o precederam tenham culpas nesta
demissão e empobrecimento de uma das funções mais nobres do Estado. Tenho a
incómoda sensação de que será preciso reconstruir tudo de novo.
Post Scriptum
Não enjeito a ideia de que a conferência de Sócrates em
Vila Velha de Rodão é em si um facto político e que há argumentos aduzidos por
Sócrates nessa presença pública que merecem ser amplamente discutidos e se
calhar beliscando e de que maneira a justiça portuguesa. Doa a quem doer. Mas a
comparação abstrata e formal entre a detenção de Luaty Beirão em Angola e a
detenção de Sócrates sem culpa formada em Portugal para justificar que Portugal
e o seu governo não têm moral para criticar o governo angolano é no mínimo de
péssimo mau gosto. Mas a personalidade vai ser assim por todo o sempre e o
espaço político vai ter de equacionar a sua presença.
Acusado ou não, condenado ou futuramente inocente, pelo
menos que desta resiliência política resulte um debate aberto da justiça que
temos. O escrutínio público da maneira como a justiça opera faz parte da
própria democracia. Já nos faltava cá mais um poder intocável. Nada disso se
confunde com a crítica e escrutínio político de Sócrates como agente político.
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