(Apenas
algumas ideias simples para combater a espuma destes dias)
Vai por aí algum alarido sobre a pretensa incoerência de
um acordo de governo à esquerda, com apoio parlamentar proporcionado pela
maioria também à esquerda que se formou na Assembleia da República a partir das
eleições de 4 de outubro. E convém recordar que quanto votamos o fazemos para a
assegurar uma dada composição parlamentar, até porque não controlamos a formação
dos governos e muito teríamos que dizer sobre tal matéria.
Em primeiro lugar, permitam-me que explicite uma espécie
de conflito de interesses. Na qualidade de simpatizante não militante do PS,
que votou inclusivamente nas suas mais recentes eleições internas e que nunca procurou
tirar dividendos desse facto, abandonaria rapidamente esse estatuto se o PS deixasse
de ser uma força política com capacidade de dialogar e fazer acordos à esquerda
e ao centro. E sublinho que a capacidade de dialogar e fazer acordos à esquerda
terá sempre de ser ajustada em função da real vontade das forças políticas à
esquerda do PS pretenderem algo de exequível. Por isso, não me reconheço
naqueles que, como Francisco Assis, parecem ditar o anátema da conversação à
esquerda e tornar a aproximação e debate ao centro como a única e exclusiva
vocação do PS. Em meu entender, foi esta última convicção que tem determinado a
deriva aparelhista do PS e com essa não há dúvida que convivo mal. Por isso, se
algum dia o PS evoluir para essa exclusividade da aproximação ao centro haverá
que zarpar noutras direções. E fazê-lo com a também convicção de que o PS não
durará muito nessa orientação.
Concretizado este esclarecimento há que denunciar a profunda
hipocrisia dos que sustentam a contra-natureza de um possível acordo de governo
à esquerda, segundo o modelo de que o PS governa e tem o apoio parlamentar da
esquerda com base num conjunto determinado de pontos que conheceremos nos próximos
dias, e que espero que não me desiluda. O argumento dessa hipocrisia é que o PCP
e o Bloco de Esquerda assentam em bases programáticas incompatíveis com os
princípios em que o programa histórico do PS está estruturado. Ora esse
argumento é uma completa falácia. Acordos de governo não representam sínteses
de programas de governo diferenciados. Os acordos de governo concretizam-se em
função de um conjunto de princípios que as forças políticas em negociação
avaliam se representam efetivamente propostas reconhecíveis pelos eleitores que
determinaram a composição parlamentar à luz da qual o acordo é firmado. Cabe às
forças políticas em negociação se os seus programas são ou não compatíveis com
o acordo firmado. Tem Pacheco Pereira razão quando afirma que o acordo deve ser
feito de prioridades claras, objetivas e sobre as quais não subsista qualquer dúvida
sobre a convergência política em torno delas operada. E de facto a clivagem
entre “quem apoia e quem não apoia a governação anterior na sua possível
continuidade” é de facto uma clivagem muito mais clara e efetiva do que aquela
que Cavaco procura encontrar no eleitorado com a relação PSD-CDS–PS entendida
como o bloco de apoio à integração europeia sufragado pelo ato eleitoral de 4
de outubro.
A hipocrisia é enorme. A clivagem “apoiar ou não apoiar a
continuidade da governação anterior” é objetiva e percebida por todos os
portugueses, apesar de toda a ocultação de situação económica realizada no último
ano de governação. A clivagem pela União Europeia é frouxa. É frouxa porque
muitos dos que votaram PS fizeram-no com uma perspetiva crítica em relação ao
processo de construção europeia e ao peso desmedido dos seus diretórios, pouco
propensos ao escrutínio democrático. E fizeram-no sabendo que a maioria que nos
governou não revelou qualquer capacidade ou interesse real em criticar as derivas
da construção europeia, retratado no agachamento de Vítor Gaspar em relação a Schäuble
e a todas as mordomias acríticas da governação face ao dictat do TINA.
Cabe essencialmente ao PCP e ao Bloco de Esquerda se o
acordo parlamentar que vão viabilizar é coerente com a ação política que, em
plena autonomia, pretendem levar a cabo. Ao PS cabe sobretudo avaliar se consegue encaixar
no seu programa de governação as exigências de tais partidos e avaliar se isso é
compatível com uma outra maneira de conjugar consolidação orçamental e uma
outra forma de encarar a austeridade. É fácil o equilíbrio entre estas posições?
Certamente que não e isso explica que só agora se tenha produzido esta
aproximação. O que prova a força do contexto e da mudança das condições
objetivas em que a ação política se inscreve. É sobretudo difícil porque conhecemos
a fragilidade da construção do Euro e os efeitos maléficos que este inacabado edifício.
Esperemos que a evolução da situação económica não conduza o PCP e o Bloco de
Esquerda a intuírem que o constrangimento do regime do Euro se torna demasiado impeditivo.
Com a hipótese deste acordo de governação de base parlamentar
a situação política nacional ganha flexibilidade e combate a sua cristalização
em torno da ideia do arco da governação. Espero com curiosidade a versão
concreta do acordo para avaliar se de facto se trata de um conjunto de princípios
que resistam à mínima turbulência.
E já agora convinha perguntar ao presidente da República
se entre o velho programa social-democrata do PSD e a governação concretizada por
Passos Coelho há alguma aproximação.
Gosto. Apoiado.
ResponderEliminarTexto pertinente e interessante com o qual estou em total acordo
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