(De vez em
quando, muito espaçadamente, a academia sueca parece querer lembrar-se que há outra
economia a premiar)
Diz-se que na cerimónia de entrega do Nobel de Literatura a José Saramago,
sessão em que Amartya Sen, Nobel de Economia, galardoado nesse mesmo ano, foi
registado o espanto de Saramago ao ouvir o discurso de agradecimento do
laureado Amartya Sen. Não terá passado pela cabeça de Saramago que pudesse haver
economistas galardoados com um discurso daquela natureza e alcance como aquele
que Sem proferiu nessa cerimónia.
Pois é mesmo assim. A academia sueca passa anos a premiar trabalhos de economistas
que ora têm que ver com os mercados financeiros, ora com assuntos e temas tão
exotéricos que é difícil a um cidadão comum entender à distância a valia do
pensamento galardoado. É verdade que em alguns anos a academia resolve premiar
no mesmo ano economistas que defendem uma coisa e o seu contrário com
abordagens opostas querendo com isso alertar para a conflitualidade entre os
paradigmas económicos, conflitualidade que oculta uma relação desigual de poder
e de acesso à produção e difusão do conhecimento entre esses mesmos paradigmas.
Pois este ano é uma daquelas atribuições que permitem a alguns
investigadores economistas pensar que também existem, dada a contiguidade que
existe com o galardoado. Angus Deaton é um economista incontornável nas
abordagens à pobreza e à distribuição do rendimento, sobretudo pelo seu
trabalho de investigação que permite hoje a muitos investigadores usar
microdados respeitantes a rendimento de famílias para estudar os já referidos
fenómenos da pobreza e da desigualdade e propor medidas consequentes de política
para minimizar tais problemas. Alguma informação económica rejubilou e informou
mal quando situou Angus Deaton no domínio da microeconomia. A abordagem de Deaton
pode ser considerada micro porque dá consistência à utilização de microdados no
estudo da pobreza e da distribuição do rendimento, ou seja, com utilização de dados
de famílias. Mas no fundo Deaton é um economista do desenvolvimento e nessa perspetiva
conheço bem a sua obra pelo que ela permite avançar na dimensão normativa desse
desenvolvimento e na medida dos níveis de bem-estar material ou de privação
humana que o crescimento económico ou a sua ausência tendem a provocar.
Este trabalho de Deaton é sobretudo relevante para fundamentar o trabalho
de terreno junto de comunidades em que o “rendimento” das famílias tem de ser
imputado a partir de variáveis de consumo e de despesa, já que não estamos
perante famílias com rendimentos salariais de atividades tipificadas.
Mais recentemente a intervenção de Deaton tem sido decisiva para oferecer uma
crítica ao chamado experimentalismo aleatório, que consiste na realização de
experiências de simulação dos efeitos de um determinado efeito de política com
a ajuda de um grupo de controlo que não beneficia do instrumento de política
que se pretende avaliar. A crítica de Deaton, muito baseada na extrapolação que
pode ser ensaiada a partir desses ensaios, veio trazer o peso do seu pensamento
a um debate em que os experimentalismos não tinham adversário à altura, sobretudo
de um adversário com tanto conhecimento publicado sobre microdados de famílias
e comunidades.
Deaton é também um crítico da ajuda pública internacional. A crítica de
Deaton talvez tenha sido interpretada como uma rejeição dessa ajuda pública internacional.
Interpreto-a mais como um contributo para uma melhor, mais eficiente e mais
eficaz ajuda internacional. Mas THE GREAT ESCAPE é uma daquelas obras em que
nos reencontramos com economistas grandes intelectuais e potencialmente
transformadores do seu tempo, ao nível da grande tradição dos grandes
economistas. É daquelas obras que se lê com entusiasmo mesmo que não
partilhemos algumas das duas ideias.
Mas a consequência maior do seu NOBEL é a possibilidade que ele dá a muitos
investigadores de sentirem que também existem, prolongando a sua motivação
muitas vezes destruída ou abalada por uma economia demasiado esotérica e
afastada do mundo real. Mas estou certo que este não será o novo normal da
academia sueca, mas tão só um simples arrependimento pontual.
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