(Reflexões
sobre o que os resultados eleitorais nos trouxeram em termos dos princípios que
inspiram este blogue e este vosso amigo …)
Bom o povo votou, mas uma cada vez mais preocupante abstenção continua a
tolher a democracia em Portugal, pelo que ela significa de alheamento ou de
desconfiança em relação ao destino coletivo. Nas condições atuais, o estudo da
abstenção exige uma tese de doutoramento, pois teremos pelo menos três fatores
entrelaçados: grande parte da população jovem que emigrou estará recenseada e
não votou nos círculos da emigração; o envelhecimento galopante da população
portuguesa retira pessoas da ida às mesas de voto; uma grande parte do
eleitorado terá irreversivelmente rompido com a sua obrigação cívica e será
dificilmente recuperável para o mesmo, pelo menos enquanto os principais
partidos continuarem a assobiar para o lado.
Da longa maratona eleitoral, dois registos, um ilustrativo e outro
deprimente. Ilustrativa foi a quase euforia de uma provável maioria absoluta
que terá passado pelas mentes dos Marcos Antónios da coligação que se foi
desvanecendo à medida que os resultados se iam sobrepondo às sondagens e que
culminou no cautelosíssimo discurso de Passos Coelho. Deprimente, profundamente
deprimente, foi a figura de um capitão de Abril, Sousa e Castro, velho e
abatido, a esgrimir moinhos de vento com uma possível eleição de 2 deputados do
partido de Marinho e Pinto, incluindo a sua em Lisboa.
Depois, num contexto em que as sondagens pré-eleitorais se revelaram
claramente pertinentes, há que assinalar três factos mais imediatos e uma
tendência estrutural que emerge, aliás esta última preliminarmente abordada por
Pacheco Pereira na tardia edição do Quadratura do Círculo.
O primeiro facto mais imediato a assinalar é a resiliência da maioria
governamental (mesmo perdendo um número substancial de votos e deputados) que
importa estudar muito mais em profundidade. Podemos acenar com a mais
despudorada manipulação de números e de situações e sobretudo com o aliviamento
eleitoralista dos últimos meses, que se estendeu inclusivamente até aos últimos
dias da campanha (veja-se o caso dos enfermeiros). É um facto mas ganhar uma
eleição mesmo com maioria relativa depois das perversidades e maldades
praticadas (só paradas pelo Tribunal Constitucional) por mais manipuladora que
ela seja terá de ser suportada por algumas condições objetivas. Poderemos
talvez falar de memória curta dos portugueses e da sua forte recetividade aos
sinais de recuperação do consumo. Somos pequeninos e receosos e tendemos a
sobrevalorizar os primeiros sinais de recuperação. Mas pode haver matérias mais
profundas. As hoje indefiníveis classes médias poderão ter sido menos
penalizadas do que pobres e ricos, estando aqueles já muito fora do espectro de
voto e estes últimos condenados por questões de classe a aguentar e a continuar
a votar no centro-direita. Não desdenharia esta interpretação sobretudo a
partir dos resultados encontrados a propósito dos grupos intermédios de
rendimento em Portugal, que são como se sabe uma variável muito imperfeita para
identificação das classes médias, mas ainda assim a menos má.
Estou para ver como e em que momento a maioria vai estatelar-se ao comprido
com esta incapacidade de governar com maioria absoluta e em que medida vai
controlar os reflexos condicionados que afloraram no início da noite eleitoral.
O segundo facto imediato é a derrota estrondosa do PS e de António Costa e
também minha derrota na medida em que estive entre os simpatizantes do PS que
votaram a sua eleição interna. Compreendo do ponto de vista político a sua não
demissão, sobretudo pela invocação da ausência de alternativas internas de
homens de governo como Costa, mas afetivamente incomoda-me que uma derrota
desta natureza não tenha consequências clarificadoras. A fragilidade futura de
Costa é imensa. No plano interno, vai começar a ser fervido em lume brando pelas
luminárias mais incompetentes e cinzentas no interior do aparelho socialista.
Aquela sala do Altis tinha um peso etário aterrador. No plano exterior ao
partido, Costa vai aguentar nos tempos futuros uma pressão de encruzilhada
terrível entre defender o seu reduto com a negociação seletiva e pontual com a
maioria ou dinamizar uma aproximação/convergência com as forças da esquerda
mais radical. Anunciam-se tempos turbulentos para o interior do PS e na minha
opinião o pior seria a instalação de uma paz podre. A opção ontem reclamada por
Jorge Coelho do PS não apoiar na primeira volta nenhum candidato presidencial é
em meu entender o prenúncio de um fim anunciado, ou seja, uma longa e penosa
clarificação entre direita e esquerda no interior do partido.
O terceiro facto imediato é a subida vertiginosa do Bloco de Esquerda que é
fruto de dois elementos essenciais: a forma como a prestação fresca e arejada
de Catarina Martins foi percecionada e vendida pela comunicação social e a
capitalização de uma tendência radical no eleitorado que se prende com a
tendência estrutural que gostaria de analisar separadamente. A forma como
Catarina Martins emergiu numa empastelada liderança do Bloco constitui em si um
facto político relevante, sobretudo do ponto de vista da capacidade revelada
para capitalizar a radicalização. Foi muito curioso ver o modo como o Bloco
recebeu os resultados em simultâneo com o reconhecimento da vitória eleitoral
da maioria. No subconsciente das personalidades que apareceram, Marisa Matias e
Mariana Mortágua, estava implícita a ideia de que talvez tivessem batido de
mais no PS. Pois, mas alguém não compreendeu esse risco. O Bloco emerge com
clareza como uma espécie de SYRIZA português e novas encruzilhadas de
crescimento vão colocar-se à força política agora com 19 deputados.
A tendência estrutural aflorada por Pacheco Pereira, ontem quando a noite
já ia longa, é a de que uma instabilidade estrutural está a nascer na sociedade
portuguesa, em parte gerada pelo There is No
Alternative que a degradação do
escrutínio democrático nas instâncias europeias está a provocar. Essa
instabilidade traduz-se no crescimento de um radicalismo à esquerda, em parte
induzido por um PS que tarda a definir-se em função dos combates que está
disposto a travar no plano europeu, em parte também provocado pela ideia de
muro que a degradação democrática nas instâncias europeias tem vindo a
determinar. Não bastarão paninhos quentes para ultrapassar a situação criada. O
radicalismo estrutural tenderá a inviabilizar qualquer possibilidade concreta
de proporcionar uma alternativa de governação respaldada pela maioria
aritmética de esquerda que está criada no parlamento. Do ponto de vista do
potencial de federação de interesses a que o PS pode aspirar, os resultados de
ontem colocam o PS numa posição difícil que nunca enfrentou até agora. A
dimensão dos grupos parlamentares à sua esquerda já não pode ser olhada com
indiferença ou comiseração.
E chega de racionalizar resultados. É tempo de uma reação afetiva.
O mapa eleitoral que abre este post
causa-me muita incomodidade. É demasiado laranja para meu gosto. Mas ajuda-me a
racionalizar algo que já vinha se formando no meu espírito. De regionalização
já dei para esse peditório. Lutemos simplesmente pela descentralização. Globalmente, respira-se melhor mais para sul.
No plano das minhas deambulações familiares pelo território, a minha impressão
é mitigada. Alguma alegria em Caminha e Seixas, onde paro cada vez menos mas é
retribuidor que aqueles minhotos transfronteiriços tenham resistido. No Porto e
em Gaia, para esquecer. Numa Lisboa que o PS não conseguiu ganhar globalmente,
Alcântara resistiu, de mal o menos pois as minhas deambulações familiares
também passam por aí.
Mas, globalmente, lá em casa, a única que ficou contente com os resultados
foi a MIMI, a simpática gata vadia que por lá passa bastante tempo em busca de
guarida e alimentação e que hoje de manhã parecia não compreender que só
tivesse no prato alguns grãos de ração seca quando o PAN obteve um lugar de
deputado. Talvez esperasse o pedaço suplementar de fiambre que hoje não
apareceu.
E daqui também um abraço de felicitações ao PS algarvio com o qual me tenho
cruzado nos últimos tempos. Se em todo o país tivesse sido assim, outro galo
cantaria.
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