quarta-feira, 12 de março de 2014

A ESSÊNCIA E O TIMING



Foi um primeiro-ministro irritado que se referiu hoje ao chamado Manifesto dos 70, mais conhecido pelo manifesto sobre a reestruturação da dívida para um crescimento sustentado da economia portuguesa.
Afinal não é para menos, pois o leque de personalidades que assina o manifesto constitui um vasto campo de sensibilidades, que poderíamos caracterizar, talvez com a exceção de gente afeta ao Bloco de  Esquerda, como um apoio alargado a uma governação alternativa a esta maioria. Imagino também que terão saltado os olhos a Cavaco quando duas personalidades do PSD mais profundo como Vítor Martins e Sevinate Pinto, seus assessores de longa data, assumiram a liberdade de assumir também o manifesto.
O exercício de liberdade cidadã do manifesto é incontornável e o cínico branqueamento da situação que suscita o documento é suficientemente gravoso para justificar uma posição desta natureza. Dou de barato que possa discutir-se o timing da sua apresentação (até tu ó senadora Teodora?), mas o que é lamentável é que nenhum dos opositores discute a sua essência.
Como seria expectável, as aves raras e submissas que povoam a Comissão Europeia, pelo menos nos serviços mais identificados com a política macroeconómica da União e da zona euro, apressaram-se a vomitar a ideia de que a dívida portuguesa é sustentável e que não necessita de ser reestruturada, mesmo que justa e inteligentemente como o manifesto o reclama.
O conceito de sustentabilidade da dívida não é apenas uma operação de cenarização matemática de trajetórias possíveis de pagamento da mesma, através designadamente de estimativas de taxas de juro, maturidades e excedentes primários orçamentais que é necessário gerar. A sustentabilidade da dívida exige que se considere no centro da análise as implicações penalizadoras do crescimento económico que os necessários excedentes primários orçamentais tenderão a provocar, sobretudo pela via da diversão de recursos gerados pelas exportações do investimento para o pagamento de juros. E é essa a dimensão que o manifesto sublinha, denunciando o cinismo insuportável dos que continuam a apregoar a retórica do crescimento para justificar a sua opinião sobre a sustentabilidade da dívida e tudo fazem com a promoção de políticas e de desigualdade (ver post de ontem) que penalizam esse crescimento. O cinismo chega ao ponto de promover uma política macroeconómica na União e zona euro que adia a recuperação económica e com isso penaliza os esforços de exportações portuguesas tão necessários para a proclamada sustentabilidade da dívida.
Estamos no meio de uma peça de teatro gigantesca, com atores vulgares e solícitos do lado de cá e cínicos e prestidigitadores do lado de lá. Para cada situação concreta, esta gente encontra uma teoria nova para explicar o comportamento das taxas de juro e dos mercados, usando sempre em última instância esse argumento – não argumento para compensar a falta de ideias sobre a essência do problema. E até Cavado consultou os deuses para explicar que os tais mercados retribuiriam o famigerado consenso.
Mas haverá consenso mais alargado do que o que suporta o manifesto?

Sem comentários:

Enviar um comentário