O artigo de Teresa de Sousa, ontem, no Público,
inserido no que considerei o melhor do fim-de-semana, já nos introduzia na
complexidade que a situação ucraniana traz à governação mundial, embora o
fizesse essencialmente na perspetiva de uma União Europeia desatenta e
essencialmente apostada no deixa andar, que o tempo resolve.
Mas a questão da Ucrânia é, a meu ver, o
resultado de uma desatenção mais vasta, que começa com queda do muro de Berlim
e com a desagregação da União Soviética e da sua influência no leste europeu
mais profundo. Essa desagregação que foi vista como uma vitória dos valores da
liberdade e do mercado (para alguns o principal significado) deu origem a
economias de mercado bem mais complexas do que o esperado, sobretudo pela
coexistência de economias de mercado formais e subterrâneas, de uso da
democracia por plutocracias e formas de “crony capitalism” muito difíceis de acomodar
em processos democráticos minimamente “accountable” pelo escrutínio democrático
livre. O ocidente foi encolhendo os ombros a esta realidade complexa, sempre na
ilusão de que a democracia e a economia de mercado seriam suficientes para,
dentro, fora ou em associação estreita com a União Europeia, conter e
domesticar todas as malformações do capitalismo a leste. Para além disso, o
encolher de ombros tornou-se também inevitável quando os interesses da integração
e ocupação económica de tais espaços penetraram a diplomacia, segundo um modelo
de realismo político ditado por uma rede de interesses cada vez mais complexos
e contraditórios.
Mas pior do que tudo foi ignorar, por um lado, a
história anterior à Revolução bolchevique de 1917 (e essa reemerge de quando em
vez, ressuscitando velhos monstros e conflitos) e, por outro, que estas economias
se abriram ao exterior de forma desabrida e muitas vezes sem organização de
interesses aparente, constituindo hoje uma geometria de interesses que é
praticamente impossível desconstruir.
Esta ideia foi-me hoje sugerida por uma pequena intervenção
de João Monjardino na TSF que alertava para a chegada ao problema da Ucrânia da
China. Desconhecia que a China realizou nos últimos tempos avultados investimentos de compra de terra para potenciar a partir de um dos grandes
gigantes de produção alimentar os complementos de produção cerealífera e também de carne que o
aumento do consumo per capita chinês
está a exigir e que a produção nacional não está em condições de satisfazer. Também
por esta via, temos um outro protagonista de peso mundial a complicar o xadrez ucraniano.
Há desatenções que se pagam caro. E para além disso estamos a falar de capacidades
produtivas que interessam sobretudo a colossos demográficos e não a sociedades
em declínio.
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