quinta-feira, 27 de março de 2014

DOS ALEMÃES QUE FOMOS AO SANGUE NAS PAREDES


A cabeça de José Manuel Félix Ribeiro (JMFR) comporta uma tal densidade intelectual e riqueza de conhecimentos quanto é humilde, sério e aberto o seu modo de estar (tanto mais quanto “prefere observar o mundo da sua janela”). Deste facto resulta um personagem quase não entrevistável, mesmo para alguém do quilate de António José Teixeira. Ainda assim, foi um bálsamo a presença do JMFR no sábado à noite na SIC-N – das suas reflexões, que dariam pano para muitas mangas, faço seguidamente algumas escolhas pessoais, começando por cinco citações eloquentes sobre o momento que se vai vivendo neste nosso torrão lusitano.

Citação nº 1, a propósito dos antecedentes próximos da nossa crise: “Quando nós entramos na união económica e monetária, quando nós ou quando a Grécia, ou quando a Espanha, ou quando a Itália iam ao mercado, os seus Estados colocavam dívida pública, tinham que pagar um diferencial grande quando comparado com o que a Alemanha tinha que pagar quando ia colocar dívida pública nos mercados. (...) A seguir à união económica e monetária, durante dez anos, os spreads reduziram-se praticamente a zero, ou seja, os mercados não só consideraram que tinha deixado de haver risco cambial – porque era a mesma moeda que circulava e não uma moeda de cada país – como na prática admitiram que não havia risco de crédito, ou seja, que aqueles países nunca iam colocar os credores perante riscos de default. Portanto, o que eu estou a dizer é que durante dez anos nós fomos todos alemães. (...) Nós conseguimos ter capacidade de obter empréstimos no exterior e taxas de juro que nunca tínhamos tido que eu me lembre e, portanto, na prática, só uma pessoa sem instintos de sobrevivência é que não ia aproveitar. Portanto todos nós, os bancos, as empresas não financeiras, o Estado, tudo se endividou. E o que é mais extraordinário é que durante essa década nós não crescemos.”

Citação nº 2, acerca do programa de ajuda: “A nossa doença era grave porque nós endividamo-nos, não crescemos e, portanto, a certa altura, os mercados fecharam-se e veio uma junta médica [Troika] (...) e é extraordinário que tinha havido uma junta médica, porque se não tivesse havido era muito pior na minha opinião. (...) Agora, o que era muito importante era ver que essa junta médica devia ser examinada a posteriori – como é que ela atuou e que resultados é que teve a sua atuação, porque isso é muito importante para deixarmos de ter um complexo de culpa que nos paralisa.”

Citação nº 3, relativa à essência do apoio que nos foi prestado pelos credores: “A operação que foi feita em Portugal nos últimos dois anos é uma operação cirúrgica, deveria ter sido. Acho que ela foi muito medieval, porque foi muita sangria, muita amputação, pouca anestesia e muito sangue espalhado nas paredes da sala de operações. Acho um bocadinho medieval mas, como eu não fui formado para cirurgião, não sei avaliar.”

Citação nº 4, sobre a intervenção troikista e suas deformações: “Nós, o que fizemos, foi tornar mais barato o nosso modelo. Foi o resultado fundamental da Troika: tornar mais barato o nosso modelo e introduzir-lhe, no que diz respeito às relações laborais, mudanças. O resto não se pôde fazer, porque é muito ingénuo considerar que se vai fazer uma reforma profunda atrás do biombo de uma intervenção externa. Os problemas que houve com o Tribunal Constitucional resultam desta absoluta infantilidade: não se pode fazer uma reforma profunda da sociedade atrás de um biombo de uma intervenção externa, porque a sociedade não tolera isso. Tem que se explicar primeiro, tem que se conquistar as pessoas, tem que se conquistar os outros partidos, tem que se tentar chegar a um acordo sobre coisas que nós podemos fazer. Sem nunca deixar de ter em conta o seguinte: o Estado tem que garantir o bem-estar do seu povo. Agora, o seu povo tem que se organizar para que a economia cresça.”

Citação nº 5, quanto à catástrofe troikista e à necessidade de a conjurar: “Nós não podemos reduzir as pessoas a um nível de insegurança tão grande que as pessoas nem sequer tenham vontade de acumular competências. Também não podemos dar-lhes tudo como se elas tivessem direito a tudo, não. Mas o que nós temos é que acumular capital humano por forma a que isso atraia o exterior. Porque as empresas americanas que vêm para cá para os serviços, vêm por causa dos engenheiros ou por causa das pessoas que sabem falar línguas, não vêm por causa da mão-de-obra barata do Vale do Ave como era dantes. E o meu grande problema é que as pessoas que vieram da ‘junta médica’ não conhecem o esforço que nós fizemos durante 25 anos, na sequência da queda da muro de Berlim, para responder a um problema, a uma situação que é: ou nós damos um salto na qualificação ou nós vamos ser uma periferia verdadeira da Europa.”

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