José Pacheco Pereira, sábado, Público,
“Colocar o engano no centro da política”
“ (…) Feita esta fronteira, há uma discussão sobre a
moralidade em política de outra natureza e penso que ela é crucial nos dias de
hoje. É quando a imoralidade, a mentira, o engano, o desprezo pelas pessoas
comuns, o fácil pisar dos mais frágeis, torna a decência mínima que a política
deve ter em democracia, um bem precioso e a indecência um veneno quotidiano.
Vivemos em tempos onde essas imoralidades abundam, todas
elas tendo como efeito a destruição da dignidade do seu semelhante, o seu
amarfanhamento pela indiferença ou o dolo, com o acesso ao poder de uma geração
de políticos absolutamente amorais, criados numa escola em que a desertificação
cultural e ideológica é total, em que o manobrismo reina no meio de pequenos
círculos e em que a educação pela intriga, feita em meios muito medíocres, sem
abertura a nenhum mundo, nem a organicidade dos meios pequenos, nem o
cosmopolitismo. Eram os políticos de antes melhores? Uns eram, outros não, mas
não havia esta fusão de mediocridade e amoralidade dos dias de hoje, como regra
de vida e de carreira.
Este amoralismo não é um pragmatismo, que podia ser um
mérito, nem sequer um oportunismo que a política em democracia aceita como
necessário em certas circunstâncias. É outra coisa: é uma ignorância e uma
indiferença, um egoísmo obsessivo mas de muito pequeno alcance. Está muito
ligado à falta de mundo e de leituras, a um provincianismo atroz, e a uma vida
enclausurada em experiências estandardizadas e triviais, que tiram dimensão ao
exercício do poder. Quando estas pessoas chegam ao topo, isto revela-se de
forma muito cruel. O problema é que há sempre quem pague um custo por este
modus vivendi. O país e os outros. (…)”
Gosto muito sobretudo da tirada sobre o provincianismo
atroz e a trivialidade das experiências de vida que tiram dimensão ao exercício
do poder. Serão os políticos cosmopolitas e com experiência estimulante de vida
uma espécie em extinção?
Pedro Marques Lopes, domingo,
Diário de Notícias, O bafo do Minotauro
“(…) Nós, portugueses, sabemos que há milagres. Pode
acontecer que através dum grande consenso entre os partidos do arco da
governação as coisas possam melhorar. E quais serão as bases do consenso?
Pois claro, a reafirmação das políticas que foram
seguidas neste últimos três anos. O primeiro consenso, aliás, pode começar por
ser o anunciado pelo primeiro-ministro, esta semana, no Parlamento: os cortes e
as descidas de salários passam a definitivos. O segundo consenso será o
pré-anúncio de mais cortes nas pensões e descidas salariais provisórios (talvez
já em Abril), que daqui a um ano passam a definitivos. O terceiro, pode ser o
de termos impostos ainda mais altos. O quarto, limitar ainda mais o acesso a
prestações sociais. O quinto, acabar com a saúde e a educação públicas. Com
esta consensualização toda, o crescimento económico virá a toda a brida.
Tira-se o que resta de dinheiro à economia, com os fantásticos resultados
conhecidos, e tratamos de exportar tudo e mais alguma coisa. Talvez mesmo as
pessoas que ainda cá estão. Vão gozar com o outro. Um consenso para deitar fogo
é bom? Como é que se pode obter um consenso com um primeiro-ministro que diz
que as outras partes têm de aceitar a realidade como ela é? Sabendo que é ele
que define o que é ou não real. E que por acaso é, quase sempre, uma gigantesca
fantasia que diz que todas as nossas desgraças têm causas nacionais. Ou com um
líder da oposição que tem posições que desdizem em absoluto o tratado
orçamental que assinou? Pois claro, programa cautelar, saída à irlandesa.
Seguro contra todos os riscos, contra terceiros (os malfadados mercados e as
suas pulsões especulativas). Muito importante podermos arranjar dinheiro a bom
preço e sem sobressaltos. Mas será que ainda há alguém que consiga dizer sem
rir às gargalhadas que a nossa dívida é pagável, nas condições existentes, e
que é possível crescer economicamente com os encargos que ela nos impõe? O
mercado vai-nos emprestar dinheiro a taxas simpáticas - Cavaco, no dito
prefácio, diz-nos indiretamente que terá de ser abaixo, muito abaixo de 4%. E o
resto, e o que está para trás? Sim senhor, ficaremos a coberto dum segundo
resgate. Não morreremos de ataque de coração fulminante, ficaremos ligados à
máquina até que a eletricidade acabe. “
Pedro Marques Lopes não é um cronista da minha
predileção, acho-o por vezes um pouco desbocado, mas neste caso só um estilo
como o seu é capaz de desmontar a insuportável pressão para o consenso. Sobretudo
porque quem aciona essa pressão tem uma conceção demasiado afunilada do que
entender por consenso. Por exemplo e invocando a minha experiência ontem em
Lisboa, que consenso é possível prerante uma política educativa que está
vidrada na destruição da economia pública e na transformação da escola de
instrumento de inclusão em instrumento promotor das desigualdades ambicionadas?
Valter Hugo Mãe, domingo,
suplemento 2 do Público, “A mulher sagrada”
“ (…) Uma e outra vez, quando me perguntam se sei da
Pilar, se há algum homem novo na sua vida, porque o tempo vai passando e ela é
uma mulher muito nova e tão impressionante e a vida é recomeçar a cada dia, eu
respondo que aguardo notícias. Pareço aguardar novidades acerca de algum
cavaleiro educado que resgate uma donzela da sua torre, do seu altar, da
extrema virtude ou da saudade infinita. Faço contos antigos de embalar. Gosto
disso. Penso em cavaleiros muito corajosos que tenham valor humano bastante
para derrubar todas as barreiras.
Encontro homens e mulheres que pensam na Pilar assim,
como impecavelmente sentada, quieta, profunda, no centro de uma sala limpa,
infinita, luminosa, branca, para adoração. Uma mulher sagrada, de facto. Que é
o mesmo que dizer consumada, definida, completa, absoluta. Deve ser o mais
perto do perfeito que possamos conceber e deve ser por isso, sem dúvida, que
nos assusta. É uma demasia. Ao menos durante um tempo, enquanto estiver
sozinha, a Pilar é uma demasia. Precisará da sua e da coragem de um grande
homem para regressar à perdida e puramente humana condição. (…)”
Um tema aparentemente mundano, mas antes pelo
contrário profundamente humano e que só a maestria e sensibilidade de Valter
Hugo Mãe consegue transmitir para uma crónica de domingo. Uma demasia de arte
de escrever.
Miguel Gaspar, domingo, suplemento
2 do Público, “Hollywood – até as selfies têm um lado B”
“ (…) Para a história da noite, não ficarão as vergonhas
da escravatura ou angústias em órbita. Isso são apenas filmes. Previsíveis.
Escritos, filmados e montados para nos envolverem numa ilusão de realidade. Este
ano, aliás, sublinhava-se que muitos dos filmes nomeados eram baseados em
factos reais. Se a ideia era fazer os filmes mais “verdadeiros” esqueçam. Um
filme nunca será tão verdadeiro como uma selfie. Por esta razão muito simples:
a selfie cria uma ilusão muito maior do que qualquer filme.
A selfie é o filme instantâneo de um momento da
realidade. Por isso, apresentamos aqui não a imagem que marcou a cerimónia dos óscares,
mas o seu verso, o seu lado B. O making of. Meryl Streep e Ellen DeGeneres estão
escondidas e de Bradelei Cooper só se vêem os braços, que a anfitriã da noite
lamentou não serem maiores, para caberem mais caras na fotografia. A imagem que
se iria tornar viral está no écran do smartphone.”
Como se constrói hoje uma ilusão da realidade. Um
tema apaixonante que nos interpela permanentemente.
Teresa de Sousa, domingo, Público, “A Europa joga
o seu destino na Crimeia”
“Escrevi muitas vezes que a Europa, distraída com a sua
crise existencial e (mal) habituada a ter a sua segurança garantida pelos EUA,
passou os últimos anos a ignorar as enormes mudanças do mundo à sua volta. Não
viu chegar as Primaveras árabes, não definiu uma estratégia para influenciar a
sua evolução, ignorou a ameaça terrorista que se instalava nos Estados-falhados
na região do Sahel. E nem sequer se deu ao trabalho de rever a sua “estratégia
de segurança” de 2003 e já largamente ultrapassada pelas mudanças
internacionais.
Apesar da Líbia ou do Mali, não fez qualquer esforço para
se adaptar à nova doutrina de Washington que lhe atribuiu muito mais
responsabilidade pela segurança regional. Confesso que nunca pensei que a crise
que se trava hoje na Ucrânia nos entrasse pela porta dentro numa dimensão e
numa gravidade para a qual essa ausência de estratégia se torna dramaticamente
visível. É, já ninguém tem dúvida, a maior crise vivida na Europa desde a queda
do Muro. Que põe em causa as fronteiras estabelecidas desde o fim da Guerra
Fria (e a Europa sabe, melhor do que ninguém, o que isso significa) e que
apanhou os europeus absolutamente de surpresa. Desta vez, não vai ser fácil
resolvê-la apenas pelo método preferido: deixar andar. (…)”
Com um pensamento cada vez mais sólido e
estruturado, Teresa de Sousa é hoje sem sombra de dúvidas a mais profunda
analista das questões europeias, tudo o que se procura no jornalismo em vias de
extinção.
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