terça-feira, 18 de março de 2014

JOSÉ MEDEIROS FERREIRA


Encaro a morte, hoje noticiada, do José Medeiros Ferreira (JMF) como constituindo mais uma daquelas estocadas que nos vão sendo crescentemente desferidas à medida que vamos avançando na idade. Porque não é fácil conformarmo-nos com o irremediável desaparecimento de uma existência que reconhecíamos, que fazia parte. No caso, e embora estivesse longe de ser um amigo próximo do José Medeiros Ferreira, tinha por ele a admiração que sempre me merece uma figura política que pensa pela sua cabeça e com ele sempre trocava breves impressões sobre “isto” quando circunstancialmente nos cruzávamos em locais de frequência comum (já não sei se a última vez foi à porta da Versalhes, ele acompanhado da Maria Emília, ou em mesas contíguas do Procópio, ele na mesa que nunca deixará de ser a do seu cunhado Nuno Brederode Santos).

Dele me recordava de ter lido uma notável entrevista, concedida ao José Pedro Castanheira e publicada pelo “Expresso”, e fui procurá-la. Reli-a na íntegra e assim fiz a minha despedida do JMF. Dela quero partilhar em seguida os dez breves excertos que, hoje por hoje, me pareceram mais pertinentes:

i. “[Max Wery, embaixador da Bélgica em Lisboa] veio para cá em 1972 e depois apanhou a Revolução. Descreve muito bem o estado da sociedade portuguesa e das suas elites entre 1972 e 74. Estavam exatamente como há dez anos. Não tinham feito progresso nenhum, não conheciam nada do mundo internacional, pensavam mesmo que as colónias iam continuar. O relato de Max Wery diz-nos bem do desastre que se aproximava de Portugal e da ignorância das suas elites. Sempre tentei ladear esse lado oligárquico, ortodoxo, dogmático, castiço das elites portuguesas. (...)Falo das oligarquias, das que têm acesso ao poder, com um grande atraso de entendimento das coisas, que são muito situacionistas, que defendem os pequenos interesses, muitas vezes mesquinhos, medíocres, imediatistas.

ii. “Entrámos [na Comunidade Europeia] no melhor momento para Portugal. Foi um período de ouro, quando existia a Europa Ocidental e o conflito Leste-Oeste. Não vou dizer nomes, mas lembro-me de pessoas da direita portuguesa estonteadas com a Comunidade. Só viam fundos estruturais e Política Agrícola Comum, nunca os vi emitir um pensamento crítico. É esta a razão por que tenho uma visão tão crítica das oligarquias - das que têm poder, não das que têm ideias. Na dúvida, estou do lado do pensamento crítico e contra o situacionismo. Estou distante do paradigma dominante. Conheço várias pessoas que começaram o regime democrático em Portugal num paradigma totalitário e hoje estão no paradigma europeu - e das duas vezes estiveram erradas. [Durão Barroso] é um exemplo, mas há mais. São pessoas que se aproximam dos paradigmas quando eles já estão no ocaso. Quando alcançam o paradigma é como a ave de Minerva - já está no poente, no pôr-do-sol.

iii. “O outro momento em que isso me impressionou (de uma forma que percebi logo que íamos caminhar para o desastre) foi quando Portugal entrou na Comunidade Europeia, em 1996. Estou à vontade, porque fui eu que, no I Governo Constitucional, pedi a adesão, num ato de vanguarda. Cheguei ao Parlamento Europeu nesse ano; seis meses depois era talvez dos espíritos mais críticos do modo como Portugal estava a entrar na Comunidade. De uma forma acrítica, sem qualquer estratégia própria, perfeitamente passivo em relação às propostas da Comissão Europeia. Os nossos africanistas passaram todos a europeístas. A sua reciclagem, em três ou quatro anos, foi extraordinária: só viam os benefícios, nunca viram os lados perversos, contrários...

iv. “O Ernâni e o Machete assinaram por direito próprio, eles é que percebiam daquilo - não sei se me faço entender... Mas eu é que sou o responsável pela tomada de decisão, a 4 de fevereiro de 1977. Estava previsto que as negociações durassem três anos e foram oito. É claro que a tal oligarquia portuguesa se sentiu mais segura com o dr. Mário Soares, que tem um ar de bonomia, e foi por isso que o escolheram e ao Jaime Gama - mais o Sá Carneiro (que não teve papel quase nenhum, mas é sempre bom ter alguém da direita envolvido) e o prof. Freitas do Amaral (que, conforme diz nas memórias, começou a sonhar com a Europa ainda andava de bibe...).

v. “Um político tem de saber escolher as hipóteses e saber ouvir. Talvez não tivesse entrado, por exemplo, no sistema monetário europeu.

vi. “Soares, sempre generoso, colou-se imenso ao Governo Sócrates, que já era impopular e quando já se percebia que dali não vinha apoio que reproduzisse poder a não ser para o próprio secretário-geral do PS. Quem se aproximou de Sócrates só perdeu: perdeu o Soares, o Carrilho, os autarcas, o Vital Moreira (que ainda gosta de Sócrates!). Só o António Costa é que se safou: conseguiu agarrar-se à liana da Câmara de Lisboa e foi o único que se salvou da fogueira socrática. Soares teria sido um grande presidente, mas ao povo português deu-lhe um ataque extraordinário de republicanismo e achou que presidente que já o foi não pode voltar a sê-lo. E como já tinha 80 e tal anos...

vii. “Há pessoas que usufruíram do regime político quando estávamos numa situação razoável e agora, que o país está numa situação difícil, afastam-se. [P: Está a referir-se ao António Vitorino, por exemplo?]. Já não me lembro do António Vitorino...

viii. “Ele [António Costa] faz mais falta como um grande governante de Portugal do que como candidato presidencial. Nesta fase nós precisamos é de governantes, e espero que ele tenha isso em conta. Vejo mais útil, a prazo, a presença de António Costa no Governo - não sei se como primeiro-ministro se como vice-primeiro-ministro...

ix. “Acho que [o processo de construção da Europa] vai ser como o Sacro Império Romano Germânico, que começou mas ninguém soube quando acabou. Mas alguma coisa vai permanecer da União Europeia: o mercado interno... (...) [O euro] não tenho a certeza. É uma moeda propositadamente mal feita desde o princípio, uma moeda continental, não é uma moeda única. Não há crescimento na zona euro desde que a moeda foi criada, em grande parte por causa da moeda e dos orçamentos de austeridade. Não é por acaso que Portugal não cresce desde que entrou no euro. Os países não deixam de crescer por não quererem.

x. “Mas claro que isto não vai acabar tão bem como das outras vezes, porque Portugal não vai ter capacidade para fazer face ao pagamento da dívida integral. Vai ter de haver alguma forma, geral, de adiamento do pagamento da dívida - e deve estar aí a rebentar.

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