Já por repetidas vezes o tema da crescente
desigualdade nas economias de mercado foi aqui neste blogue colocado no centro
da nossa reflexão crítica, pois ele constitui não apenas um dos resultados das
políticas ortodoxas de consolidação de contas públicas, mas uma marca
generalizada das economias de mercado, pelo menos das que mais se afastam das
chamadas economias sociais de mercado.
O tema da desigualdade tem sido objeto de grande
debate sobretudo na perspetiva de abordagem dos seus efeitos perniciosos de natureza
social e política, primeiro pela destruição das condições de mobilidade social
ascendente, fonte de todo o progresso social e, segundo, pela incompatibilidade
que pode emergir entre democracia política e desigualdade.
O que tem marcado a novidade do curso que o fluxo
do debate tem assumido é a discussão das suas implicações económicas. Essa
translação do debate tem uma explicação e essa é a coexistência do agravamento
da desigualdade com a estagnação económica. Como sabemos a conformidade da evolução
de duas variáveis não significa que exista necessariamente uma relação causal
entre as mesmas. Mas, neste caso, a novidade é que têm sido registados inúmeros
progressos em matéria de investigação empírica que começam a apontar para a
presença de relações de causalidade entre o agravamento da desigualdade e a
estagnação do crescimento económico. Dito por outras palavras, começa a emergir
entre os economistas mais atentos às evidências empíricas e ao seu tratamento a
ideia de que a desigualdade pode constituir um obstáculo ao crescimento económico.
O que constitui uma profunda inversão da relação
entre desigualdade e crescimento que marcou a abordagem inicial dos economistas
a este problema. Durante largo tempo, os economistas interessados em mostrar
que o desenvolvimento económico dos países seguia um padrão predeterminado
tenderam em vão em ensaiar o enunciado de uma lei segundo a qual as economias
de mercado em desenvolvimento atravessariam um estádio intermédio de
desigualdade para só depois poderem ver reduzida essa desigualdade. O mote
poderia ser enunciado grosseiramente segundo o lema “cresce primeiro para
depois poderes redistribuir”, ou dito de outra maneira prepara-te politica e
socialmente para aguentar uma transição feita de desigualdade para depois
finalmente chegar a uma terra prometida de redistribuição, emulando os mais
desenvolvidos.
Claro que os fervorosos adversários do
determinismo histórico, materialista ou não materialista, sempre se opuseram a
essa tese, não necessitando para isso de invocar evidência empírica.
A novidade nessa crítica está em que foi possível
começar a identificar países que redistribuíram e não deixaram de crescer (o
exemplo da Coreia do Sul sempre foi muito marcante, mas também as economias
escandinavas) e mais do que isso os mais desiguais cresceram menos.
Ora, entre as evidências empíricas mais salientes
dos últimos tempos, emerge claramente o trabalho empírico de dois economistas do
FMI (pasme-se, esta instituição não deixa de nos surpreender tão contraditório é
o seu trabalho), Jonathan Ostry e Andrew Berg. Duas ideias destacam-se dos seus
trabalhos mais recentes: primeiro, desigualdade e crescimento insustentável
podem ser considerados duas faces da mesma moeda; segundo, não há evidência
credível de que as políticas redistributivas tenham efeitos penalizadores sobre
o crescimento, antes pelo contrário. Em termos médios, a redistribuição e a
consequente redução de desigualdades surgem robustamente associadas com mais
crescimento e crescimento mais durável.
Ou seja, estamos perante resultados que nos põem
loucos quanto ao cinismo dos que promovem receitas para os programas de
ajustamento:
- Ponto 1: os programas de ajustamento, tal como têm sido praticados, traduzem-se em inequívoco aumento de desigualdades.
- Ponto 2: essas mesmas entidades não largam a retórica do crescimento para tentar suavizar o produto nefasto das suas próprias receitas.
- Ponto 3: mas investigação credível (por acaso produzida no interior dessas mesmas instituições, neste caso do FMI) demonstra que essa desigualdade é inimiga do crescimento e da sua estabilidade
Isto é ou não é de loucos? Estamos aqui perante
um dos meus temas de investigação e reflexão preferidos: por que razão os
economistas não conseguem fazer-se ouvir junto dos responsáveis pela política
económica.
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