terça-feira, 18 de março de 2014

MAIS UM INTELECTUAL ESCLARECIDO QUE PARTE



“ A República Portuguesa entrou na Comunidade Europeia no melhor período desta, mas depois do estabelecimento da zona euro, do grande alargamento a leste e da crise financeira internacional, abriu-se uma fase de dificuldades no relacionamento entre os Estados e no crescimento económico, que é a actual. Ressurge assim a tentação da procura de um qualquer mapa cor-de-rosa que dê a ilusão de uma alternativa”.
Acresce que, depois da ratificação do Tratado de Lisboa, com a mudança ds ponderação dos votos suficientes para as minorias de bloqueio, emergiu um directório de facto dentro e fora dos órgãos formais da União Europeia. Este novo dado veio alterar as condições de negociação e tomada de decisões comunitárias, além de ter operado um recuo na “Europa dos Cidadãos”. No lugar desta, emergiu de novo a “Europa das Chancelarias”, simbolizada na recusa dos referendos sobre a matéria em causa e nas cimeiras bilaterais e de chefes de governo que depois se multiplicaram com a crise das dívidas soberanas”.
A capa do último livro publicado e que li de Medeiros Ferreira é a melhor forma de acusar neste blogue o desaparecimento de uma personalidade ímpar da construção da democracia em Portugal e sobretudo do pensamento que nos ajuda a situar a nossa posição no mundo.
Recordo-me que quando comecei a trabalhar mais intensamente nos Açores e necessitei de me inteirar da identidade açoriana para compreender entre outras coisas a sua geoestratégia tão deficientemente aproveitada pela República Portuguesa, sobretudo do ponto de vista das relações com os EUA, o pensamento de Medeiros Ferreira me ajudou a descobrir algum desse pensamento.
A sua capacidade de pensar criticamente o projeto europeu foi uma constante do pensamento de Medeiros Ferreira, compreendendo bem cedo a inevitabilidade de pensarmos criticamente esse projeto para pensarmos com maior clareza no nosso destino:
“Sem se perceber o que se passa na União Europeia andamos à deriva. E para perceber o que se passa na EU é preciso arredar a forte e densa dogmática erguida à sua volta. E partir de um ponto de vista empírico e inovador. Os recentes acontecimentos e a crise da zona euro facilitam essa mudança entre os espíritos.”
Aprecio sobretudo o seu ceticismo construtivo quanto à evolução futura da construção europeia, no qual me revejo em grande medida e que contrasta bem com as posições que Rangel tem trazido ao debate pré-europeias:
“Contrariamente aos conceptualistas da Europa, o que eu mais aprecio na EU é o seu aldo tratadístico, a sua natureza contratual entre Estados e cidadãos. Não tenho nenhuma ilusão sobre uma virtual “identidade europeia”, mesmo a do percurso dos cafés de George Steiner. Sei quando estou num ambiente europeu mas a União Europeia não precisa, nem tem, identidade e muito menos constitui um só povo. Nunca foi um povo nem separada nem organizada por Impérios ou por Estados. Daí a necessidade positiva de contratos políticos e jurídicos entre as suas partes constitutivas, cidadãos, povos e Estados. Ela é a sucessora democrática da organização internacional do continente por Impérios, Reinos, Principados, Repúblicas, cidades-livres, etc. Não é muito mais do que isso e já é muito, como o próximo futuro o dirá.”
Vai-nos fazer falta a lucidez calma e pousada deste pensamento, nem por isso menos acutilante e conseguindo o que é obra nos tempos de hoje ter uma presença televisiva onde não renunciava a essa calma lucidez. Presença que se estendia também à sua passagem pelo comentário desportivo nos Grandes Adeptos da Antena 1 nos seus tempos iniciais, onde o meu Benfica nunca teve a representá-lo analista tão eloquente.

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