quinta-feira, 27 de março de 2014

BERNARD SCHMITT: 1929-2014



Hoje, pela manhã, em plena labuta de um período particularmente intenso de trabalho profissional, um mail de Angola, proveniente do meu amigo o economista José Cerqueira, reenviava uma mensagem do economista italiano Alvaro Cencini dirigida a um grupo de discípulos de alguém que desaparecera ontem 26 de março de 2014, grupo de que José Cerqueira é seguramente um dos elementos mais brilhantes. Morreu ontem Bernard Schmitt, um economista francês talvez desconhecido dos que associam a economia apenas ao mainstream de pensamento que continua a dominar o universo económico.
A minha relação com a obra de Bernard Schmitt é toda ela uma memória de interrupções, de impulsos não concretizados e sobretudo de intuição de que a história do pensamento económico lhe reservará um dia (certamente já não estarei cá para o testemunhar) o lugar que a profundidade do seu pensamento justifica.
O meu contacto inicial com a obra de Bernard Schmitt é contemporâneo da minha aprendizagem extra Faculdade de Economia que tive de realizar para assumir com alguma dignidade a experiência de assistente na Escola em que me havia formado. Na altura, a formação em macroeconomia que a minha geração pode obter na FEP era indigna da possibilidade de exercer com responsabilidade funções docentes. Havia ao tempo uns aprendizes de mestres, nem sequer bons vulgarizadores, numa Escola que considerava globalmente a formação macroeconómica um luxo desnecessário para gente que aspirava à entrada no universo bem remunerado da gestão empresarial. A formação macroeconómica era deliberadamente considerada um luxo que as escolas de Lisboa deveriam assumir, pois só elas poderiam aspirar pela proximidade e influência a colocar gente no governo e em instituições nas quais a macro não fosse considerada um desperdício de formação. Acreditem que nunca cheguei a recuperar desta orfandade a que a minha Escola me forçou.
Ora, no âmbito da autoaprendizagem a que me entreguei na altura, estava a necessidade de estudar em profundidade o circuito económico e a sua interpretação,  cujo domínio e conhecimento são bem mais complexos do que os manuais de vulgarização nos fazem crer. La formation du pouvoir d’achat (1960), Paris: Sirey; Monnaie, salaires et profits (1966), Paris: Presses Universitaires de France e L’analyse macroéconomique des revenues (1971), Paris: Dalloz foram nessa época auxiliares preciosos, marcas que só mais tarde iria reconhecer quão importantes elas foram, sobretudo porque a marca de quem estudou com Piero Sraffa e Dennis Robertson em Cambridge acaba por vir ao de cima.
Com a reorientação dos meus estudos e docência para a área do desenvolvimento, a obra de Schmitt ficou em suspenso. Mais tarde, quando a dimensão do desenvolvimento se cruzou com a da economia internacional, houve uma outra obra que me alertou para a forma extremamente inovadora como Schmitt integrava a moeda e a moeda internacional - L’or, le dollar et la monnaie supranationale (1977), Paris: Calmann-Lévy.
Mais tarde ainda, graças ao trabalho intelectual do meu amigo José Cerqueira, discípulo direto de Bernard Schmitt em Dijon, fui-me apercebendo da relevância do pensamento de Schmitt para a construção de uma moeda supranacional (na esteira dos contributos de Keynes) e sobretudo para a desmontagem da questão da dívida externa, cujos contornos transcendem o alcance do post de hoje.
Os economistas dividem-se em meu entender em dois grandes grupos. Um grupo de raridades preciosas, em que integro Keynes, Schumpeter e próprio Schmitt, que colocam a economia a um nível muito próximo do das ciências propriamente ditas, tornando-a independente da econometria e da sociologia dos comportamentos, mais fácil ou dificilmente parametrizáveis. Não propriamente uma ciência exata, mas com capacidade de formular relações e leis quânticas, isto é, suscetíveis de serem preenchidas com números concretos e por isso com maior capacidade de resistência à crítica demolidora com que cientistas físicos por exemplo desdenham da não ciência das ciências sociais. Do outro lado, temos os economistas que, apesar da sofisticação matemática de modelos e de estimações de parâmetros, não podem aspirar a esse limbo.
A economia quântica de Schmitt deu hoje origem a uma corrente (quantum macroeconomics) da qual se espera que honre o mestre e lhe assegure o reconhecimento da história do pensamento que ele merece. O meu amigo José Cerqueira está nesse grupo e, apesar de estar inserido numa comunidade intelectual em Angola que o afasta da interação permanente com uma massa crítica de pensamento, estou certo que dará proximamente à estampa coisas boas que enobrecem o mestre e o ultrapassam. Como lhe dizia hoje de manhã no meu mail de resposta, pesa sobre os seus ombros uma grande responsabilidade.

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