Hoje, pela manhã, em plena labuta de um período particularmente
intenso de trabalho profissional, um mail
de Angola, proveniente do meu amigo o economista José Cerqueira, reenviava uma
mensagem do economista italiano Alvaro Cencini dirigida a um grupo de discípulos
de alguém que desaparecera ontem 26 de março de 2014, grupo de que José Cerqueira
é seguramente um dos elementos mais brilhantes. Morreu ontem Bernard Schmitt,
um economista francês talvez desconhecido dos que associam a economia apenas ao
mainstream de pensamento que continua
a dominar o universo económico.
A minha relação com a obra de Bernard Schmitt é
toda ela uma memória de interrupções, de impulsos não concretizados e sobretudo
de intuição de que a história do pensamento económico lhe reservará um dia
(certamente já não estarei cá para o testemunhar) o lugar que a profundidade do
seu pensamento justifica.
O meu contacto inicial com a obra de Bernard Schmitt
é contemporâneo da minha aprendizagem extra Faculdade de Economia que tive de
realizar para assumir com alguma dignidade a experiência de assistente na Escola
em que me havia formado. Na altura, a formação em macroeconomia que a minha
geração pode obter na FEP era indigna da possibilidade de exercer com responsabilidade
funções docentes. Havia ao tempo uns aprendizes de mestres, nem sequer bons vulgarizadores,
numa Escola que considerava globalmente a formação macroeconómica um luxo
desnecessário para gente que aspirava à entrada no universo bem remunerado da
gestão empresarial. A formação macroeconómica era deliberadamente considerada
um luxo que as escolas de Lisboa deveriam assumir, pois só elas poderiam
aspirar pela proximidade e influência a colocar gente no governo e em instituições
nas quais a macro não fosse considerada um desperdício de formação. Acreditem
que nunca cheguei a recuperar desta orfandade a que a minha Escola me forçou.
Ora, no âmbito da autoaprendizagem a que me
entreguei na altura, estava a necessidade de estudar em profundidade o circuito
económico e a sua interpretação, cujo
domínio e conhecimento são bem mais complexos do que os manuais de vulgarização
nos fazem crer. La
formation du pouvoir d’achat (1960), Paris: Sirey; Monnaie,
salaires et profits (1966), Paris: Presses Universitaires de France
e L’analyse
macroéconomique des revenues (1971), Paris: Dalloz foram nessa época
auxiliares preciosos, marcas que só mais tarde iria reconhecer quão importantes
elas foram, sobretudo porque a marca de quem estudou com Piero Sraffa e Dennis
Robertson em Cambridge acaba por vir ao de cima.
Com a reorientação dos meus estudos e docência
para a área do desenvolvimento, a obra de Schmitt ficou em suspenso. Mais
tarde, quando a dimensão do desenvolvimento se cruzou com a da economia
internacional, houve uma outra obra que me alertou para a forma extremamente
inovadora como Schmitt integrava a moeda e a moeda internacional - L’or, le dollar
et la monnaie supranationale (1977), Paris: Calmann-Lévy.
Mais tarde ainda, graças ao trabalho intelectual
do meu amigo José Cerqueira, discípulo direto de Bernard Schmitt em Dijon,
fui-me apercebendo da relevância do pensamento de Schmitt para a construção de
uma moeda supranacional (na esteira dos contributos de Keynes) e sobretudo para
a desmontagem da questão da dívida externa, cujos contornos transcendem o
alcance do post de hoje.
Os economistas dividem-se em meu entender em dois
grandes grupos. Um grupo de raridades preciosas, em que integro Keynes,
Schumpeter e próprio Schmitt, que colocam a economia a um nível muito próximo
do das ciências propriamente ditas, tornando-a independente da econometria e da
sociologia dos comportamentos, mais fácil ou dificilmente parametrizáveis. Não
propriamente uma ciência exata, mas com capacidade de formular relações e leis
quânticas, isto é, suscetíveis de serem preenchidas com números concretos e por
isso com maior capacidade de resistência à crítica demolidora com que
cientistas físicos por exemplo desdenham da não ciência das ciências sociais. Do
outro lado, temos os economistas que, apesar da sofisticação matemática de
modelos e de estimações de parâmetros, não podem aspirar a esse limbo.
A economia quântica de Schmitt deu hoje origem a
uma corrente (quantum macroeconomics) da qual se espera que honre o mestre e
lhe assegure o reconhecimento da história do pensamento que ele merece. O meu
amigo José Cerqueira está nesse grupo e, apesar de estar inserido numa
comunidade intelectual em Angola que o afasta da interação permanente com uma
massa crítica de pensamento, estou certo que dará proximamente à estampa coisas
boas que enobrecem o mestre e o ultrapassam. Como lhe dizia hoje de manhã no
meu mail de resposta, pesa sobre os seus ombros uma grande responsabilidade.
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