domingo, 30 de março de 2014

ULRRÍVEL



A divulgação dos últimos dados resultantes do “Inquérito às Condições de Vida e Rendimento” do INE tem estado, e bem, à la une da atualidade político-económica em Portugal. Assim sendo, e porque vários analistas – incluindo, neste espaço, o António Figueiredo – já terão dito o essencial a seu propósito e pretexto, não teria cabimento que viesse agora “chover no molhado”. Limito-me assim, através do gráfico acima, à apresentação de um registo equiparado de que dá conta o também recentíssimo “Social situation of young people in Europe” (publicado pela “European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions”), sublinhando a enorme degradação das condições de vida dos jovens portugueses observada entre 2007 e 2011 – a pior evolução de entre os 28 Estados membros, conjuntamente com a espanhola e a cipriota, e a quarta situação mais negativa (contra a décima posição de quatro anos antes) em termos de percentagem de jovens a experimentarem privação séria em 2011 (apenas melhores do que búlgaros, húngaros e cipriotas).

Não obstante esta minha renúncia, e dado que tenho vindo a assistir intrigado à convergente verborragia – para não dizer ao confluente desconchavo – de aparelhistas e políticos menores com titulares ou representantes de interesses económicos maiores, quereria aproveitar o momentum para repescar do meu baú de memórias recentes aquela entrevista de Fernando Ulrich (“A Propósito” de 15 de fevereiro) – que então escutei atónito sem que depois dela tenha dado conta de grande repercussão pública – em que o banqueiro do “aguenta”, do alto da impunidade que se atribui, veio repetir mais um daqueles soundbytes provocadores que deu em considerar forma adequada de exibir o dom da graça de que se julga possuído.

Qual publicitário exagerado, Ulrich falou assim: “Provavelmente não há nenhum período da história recente portuguesa – talvez em 75, talvez em 75... – em que as medidas tomadas tenham sido tão redistributivas como foram agora. Portanto, nunca provavelmente a esquerda em Portugal fez uma política tão redistributiva como tem feito o governo do Dr. Passos Coelho.” Sentenciando a conversa numa frase definitiva: “O que o Dr. Passos Coelho fez nessa matéria é tão redistributivo ou mais do que aquilo que o Partido Comunista fez em 75.


Dada a relativa concomitância temporal entre estas declarações e a divulgação de um relatório do FMI (“Fiscal Policy and Income Inequality”, datado de 23 de janeiro) é de crer que este terá sido uma fonte inspiradora da boutade proferida pelo presidente do BPI. Tanto mais que as conclusões mais mediatizadas do referido estudo iam no sentido de as medidas de consolidação orçamental implementadas pelo Governo português (com relação ao período 2008/2012 e incluindo cortes salariais do funcionalismo público, cortes nas pensões, redução das transferências sociais e aumento de impostos sobre o rendimento e do IVA), vulgo austeridade, terem conduzido a uma redução média de 6,3% do rendimento disponível das famílias e de Portugal ter sido um dos países em que essas medidas foram aplicadas com um caráter mais progressivo (acima, os gráficos de síntese publicados no “Público”, que titulava: “austeridade tirou 10% do rendimento aos mais ricos e 5% aos mais pobres”), com o consequente reflexo numa diminuição da desigualdade aferida através do índice de Gini.



Valerá seguramente a pena completar esta informação com alguns detalhes adicionais (gráficos imediatamente acima), quer observando o comportamento registado nacionalmente por tipo de medida – cito: “em Portugal, a incidência progressiva global deveu-se a cortes progressivos nos salários da função pública e nas pensões, que compensaram os cortes regressivos nas transferências sociais sujeitas a condição de recurso, que afetaram negativamente as famílias no decil de rendimento inferior” –, quer comparando a dimensão e o perfil do impacto da austeridade sobre o rendimento disponível das famílias portuguesas por níveis de rendimento com as dimensões e perfis dos impactos sofridos por espanhóis, italianos e gregos – impacto global maior na Grécia, menor em Espanha e muito menor em Itália, por um lado, e “progressividades” em todos os casos inferiores à supostamente verificada entre nós.

Dito isto, a nota mais saliente terá imperiosamente de provir da recusa de toda e qualquer hipervalorização de abordagens tecnocráticas, focalizações parciais e leituras apressadas em matérias tão delicadas e determinantes para a vida dos cidadãos como as que aqui estão em causa. Sem o que se estarão a confundir algumas árvores perfeitamente localizadas em termos de registo estatístico com uma floresta inteira de empobrecimento estrutural – porque o nivelamento por baixo que resulta do ajustamento que estamos a sofrer é uma monstruosa máquina de desigualdade – e, sobretudo, a ofender princípios básicos da sã convivência cívica e humanitária...

Sem comentários:

Enviar um comentário