Não escondo que sou um fervoroso adepto e
admirador das realizações concretizadas pelo poder local em Portugal, sem o
qual as condições de vida dos portugueses seriam manifestamente menos positivas
do que o são efetivamente em muitos dos municípios do território continental. A
descentralização faz parte dos meus princípios e valores de cidadania e
intervenção política e por isso tendo a combater sistematicamente a sobranceria
com que alguma inteligência nacional com mapa mental circunscrito às benesses
da capital encara o poder local e que tem em muitos jornalistas portugueses uma
extensão umbilical.
Mas na minha conceção de descentralização não há
lugar para conceções imaculadas e o poder local tem de estar sujeito a uma permanente
e rigorosa avaliação de “accountability”
das suas decisões e opções de alocação de recursos públicos.
E, por isso, não deixo de reconhecer que “no
melhor poder local cai a nódoa”.
Vem isto a propósito do relatório produzido pelo
Tribunal de Contas (Relatório nº 3/2014 – 2ª secção) centrado na Regulação de
PPP no Sector das Águas (sistemas em baixa), o qual abrangeu uma amostra de 19
concessões municipais de água em baixa de um universo de 27. O relatório
produzido e agora disponível para consulta e apreciação públicas constitui um
documento de leitura imprescindível para que possamos compreender os desvios da
intervenção municipal nesta matéria.
Trata-se de um tema central no universo de temas
que orientam este blogue, pois estamos perante matéria crucial para
compreendermos as particularidades das relações entre o público e o privado
neste país de brandos costumes e de total impunidade para com o desvirtuamento
e não acautelamento do interesse público.
De acordo com o relatório do Tribunal de Contas
estamos perante uma despudorada cobertura pública de riscos que caberia ao
privado acautelar:
“De acordo com as boas práticas e os princípios de
partilha de risco de uma PPP/concessão, o risco de insustentabilidade
financeira de uma PPP resultante de riscos de mercado, riscos de procura,
riscos financeiros, riscos de construção e de exploração deve ser, tanto quanto
possível, transferido para o parceiro privado, o que, de facto, não se
verificou em quase todos contratos de PPP/concessão analisados, como foi o caso
das concessões de Barcelos, do Fundão, de Valongo, de Paços de Ferreira e de
Santo Tirso/Trofa.
Alguns contratos de concessão analisados, como foi o caso
da concessão de Matosinhos, continuam a apresentar cláusulas de reequilíbrio
financeiro que garantem às entidades gestoras a cobertura de riscos financeiros
associados à alteração de spreads bancários, ou mesmo, à cobertura de riscos
operacionais, em resultado de eventuais agravamentos de custos de manutenção.
Estas situações desvirtuam, claramente, os princípios de partilha de riscos que
devem estar subjacentes a um contrato de concessão.
Cerca de 74% dos contratos de concessão prevêem,
expressamente, a possibilidade das concessionárias serem ressarcidas pelos
municípios concedentes em relação ao caso base, no caso de se verificar uma
determinada redução do volume total de água faturado e da estimativa de
evolução do número de consumidores.”
O assunto tem que se lhe diga e exige a meu ver
uma ampla investigação, pois o principal mecanismo através do qual se irá
realizar a transferência de recursos públicos para o setor privado relaciona-se
com previsões manifestamente exacerbadas de consumos e de dinâmicas demográficas,
que não sendo concretizadas dão origem a ressarcimentos por parte dos municípios,
que respondem por tais valores. Em português do mais claro, trata-se de um
saque despudorado de recursos públicos, tão manifestos pois temos desvios até
20 e 30%:
“As projeções adotadas quanto ao crescimento
populacional, bem como as capitações estimadas, apresentam, em muitas destas
concessões, um desfasamento substancial da realidade de muitos municípios.
Estas estimativas foram fornecidas e aprovadas pelas entidades concedentes, sem
que as mesmas fossem previamente auditadas ou postas em causa pelos próprios
municípios, como se encontra explicado nas concessões de Barcelos e de
Carrazeda de Ansiães.
Constata-se, sistematicamente, falta de rigor e prudência
quanto aos pressupostos técnicos e económicos adotados no âmbito da modelização
financeira dos projetos em apreço, que acaba por beneficiar as concessionárias.
As cláusulas contratuais relativas ao reequilíbrio
financeiro revelaram-se demasiado abertas, não permitindo, em certos casos,
identificar de forma clara e objetiva os eventos elegíveis para efeitos de
reequilíbrio financeiro. Todas as alterações legislativas e regulamentares
podem, na prática, independentemente da sua natureza e dos seus impactos,
potenciar pedidos de reequilíbrio financeiro a favor das concessionárias. Neste
sentido vide o contrato de concessão de Matosinhos.”
Este relatório dará origem naturalmente a toda a
série de suspeições, extremamente nefastas para a afirmação da autonomia e “accountability” do poder local. O setor
privado, e seria interesse ver que setor privado e que empresas e que composição
acionária as empresas apresentam, descobriu nestas PPP um verdadeiro El Dorado.
É por estas e por outras matérias similares que qualquer posição de esquerda
sobre a relação público-privado se deve bater por uma rigorosa imputação de responsabilidades
(o saudável hábito de prestar contas e responder por elas), doa a quem doer.
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