terça-feira, 4 de março de 2014

NO MELHOR PODER LOCAL CAI A NÓDOA



Não escondo que sou um fervoroso adepto e admirador das realizações concretizadas pelo poder local em Portugal, sem o qual as condições de vida dos portugueses seriam manifestamente menos positivas do que o são efetivamente em muitos dos municípios do território continental. A descentralização faz parte dos meus princípios e valores de cidadania e intervenção política e por isso tendo a combater sistematicamente a sobranceria com que alguma inteligência nacional com mapa mental circunscrito às benesses da capital encara o poder local e que tem em muitos jornalistas portugueses uma extensão umbilical.
Mas na minha conceção de descentralização não há lugar para conceções imaculadas e o poder local tem de estar sujeito a uma permanente e rigorosa avaliação de “accountability” das suas decisões e opções de alocação de recursos públicos.
E, por isso, não deixo de reconhecer que “no melhor poder local cai a nódoa”.
Vem isto a propósito do relatório produzido pelo Tribunal de Contas (Relatório nº 3/2014 – 2ª secção) centrado na Regulação de PPP no Sector das Águas (sistemas em baixa), o qual abrangeu uma amostra de 19 concessões municipais de água em baixa de um universo de 27. O relatório produzido e agora disponível para consulta e apreciação públicas constitui um documento de leitura imprescindível para que possamos compreender os desvios da intervenção municipal nesta matéria.
Trata-se de um tema central no universo de temas que orientam este blogue, pois estamos perante matéria crucial para compreendermos as particularidades das relações entre o público e o privado neste país de brandos costumes e de total impunidade para com o desvirtuamento e não acautelamento do interesse público.
De acordo com o relatório do Tribunal de Contas estamos perante uma despudorada cobertura pública de riscos que caberia ao privado acautelar:
“De acordo com as boas práticas e os princípios de partilha de risco de uma PPP/concessão, o risco de insustentabilidade financeira de uma PPP resultante de riscos de mercado, riscos de procura, riscos financeiros, riscos de construção e de exploração deve ser, tanto quanto possível, transferido para o parceiro privado, o que, de facto, não se verificou em quase todos contratos de PPP/concessão analisados, como foi o caso das concessões de Barcelos, do Fundão, de Valongo, de Paços de Ferreira e de Santo Tirso/Trofa.
Alguns contratos de concessão analisados, como foi o caso da concessão de Matosinhos, continuam a apresentar cláusulas de reequilíbrio financeiro que garantem às entidades gestoras a cobertura de riscos financeiros associados à alteração de spreads bancários, ou mesmo, à cobertura de riscos operacionais, em resultado de eventuais agravamentos de custos de manutenção. Estas situações desvirtuam, claramente, os princípios de partilha de riscos que devem estar subjacentes a um contrato de concessão.
Cerca de 74% dos contratos de concessão prevêem, expressamente, a possibilidade das concessionárias serem ressarcidas pelos municípios concedentes em relação ao caso base, no caso de se verificar uma determinada redução do volume total de água faturado e da estimativa de evolução do número de consumidores.”
O assunto tem que se lhe diga e exige a meu ver uma ampla investigação, pois o principal mecanismo através do qual se irá realizar a transferência de recursos públicos para o setor privado relaciona-se com previsões manifestamente exacerbadas de consumos e de dinâmicas demográficas, que não sendo concretizadas dão origem a ressarcimentos por parte dos municípios, que respondem por tais valores. Em português do mais claro, trata-se de um saque despudorado de recursos públicos, tão manifestos pois temos desvios até 20 e 30%:
“As projeções adotadas quanto ao crescimento populacional, bem como as capitações estimadas, apresentam, em muitas destas concessões, um desfasamento substancial da realidade de muitos municípios. Estas estimativas foram fornecidas e aprovadas pelas entidades concedentes, sem que as mesmas fossem previamente auditadas ou postas em causa pelos próprios municípios, como se encontra explicado nas concessões de Barcelos e de Carrazeda de Ansiães.
Constata-se, sistematicamente, falta de rigor e prudência quanto aos pressupostos técnicos e económicos adotados no âmbito da modelização financeira dos projetos em apreço, que acaba por beneficiar as concessionárias.
As cláusulas contratuais relativas ao reequilíbrio financeiro revelaram-se demasiado abertas, não permitindo, em certos casos, identificar de forma clara e objetiva os eventos elegíveis para efeitos de reequilíbrio financeiro. Todas as alterações legislativas e regulamentares podem, na prática, independentemente da sua natureza e dos seus impactos, potenciar pedidos de reequilíbrio financeiro a favor das concessionárias. Neste sentido vide o contrato de concessão de Matosinhos.”
Este relatório dará origem naturalmente a toda a série de suspeições, extremamente nefastas para a afirmação da autonomia e “accountability” do poder local. O setor privado, e seria interesse ver que setor privado e que empresas e que composição acionária as empresas apresentam, descobriu nestas PPP um verdadeiro El Dorado. É por estas e por outras matérias similares que qualquer posição de esquerda sobre a relação público-privado se deve bater por uma rigorosa imputação de responsabilidades (o saudável hábito de prestar contas e responder por elas), doa a quem doer.

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