terça-feira, 4 de março de 2014

VENEZUELA OU O DESVIO ANUNCIADO



Alguma esquerda saudosista e afetivamente comprometida com as tentações revolucionárias da rua e da democracia direta sempre olhou o “chavismo” e a revolução “bolivariana” com condescendência. Recordo-me que alguns intelectuais materialistas como Marta Harnecker viram no chavismo o ressuscitar de velhas esperanças, partindo sobretudo das realizações concretas em matéria de redução da pobreza e da colocação ao serviço das maiorias pobres e rurais dos benefícios da exportação de petróleo, outrora prisioneira dos interesses de uma oligarquia claramente minoritária.
Mas a história ensina muita coisa e basta estar a ela atento para compreender a inevitabilidade dos desvios que rapidamente comprometem a viabilidade da rotura a mais largo prazo.
Em primeiro lugar, cumprido que esteja o primeiro impulso redistributivo e com forte impacto na redução da pobreza, as populações identificadas com os serviços e atividades urbanas conexas com o filão dos recursos naturais começam a evidenciar aspirações de consumo e de mobilidade social ascendente que progressivamente se tornam incompatíveis com a aliança basista que suportou o golpe revolucionário. Essas aspirações confundem-se com a reivindicação de instalação da democracia e são facilmente instrumentalizadas pela “burguesia compradora” que nunca esqueceu o bem bom do modelo oligárquico inicial.
Em segundo lugar, a sucessão de líderes combatentes como Chávez é também normalmente letal, por mais aproveitamento mítico-religioso que as personalidades agora no poder se esforcem por orquestrar. Há sempre um Maduro à espreita e esse é sempre de pior qualidade do que o líder desaparecido, por mais que se apresente como herdeiro de uma legalidade revolucionária.
A história parece repetir-se, pois a primeira fase é sempre a mais fácil. As desigualdades de partida são tão evidentes e as patifarias da oligarquia tão despudoradas que é sempre fácil nos primeiros tempos alargar a aliança revolucionária. Mas estes processos não se ganham nesta primeira fase, perdem-se habitualmente nos estádios posteriores do redistributivismo político, económico e social. E aqui a transição para a democracia é penosa, conduzindo na maior parte das vezes à interrupção violenta do próprio processo democrático.

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