quinta-feira, 18 de abril de 2013

CARTAS MARCADAS


Há algo de estapafúrdio quando um autor como João Ferreira do Amaral (JFA) atinge o top de vendas! Mesmo sabendo que o produto foi para tal trabalhado pelos editores e que o título escolhido também não esconde um aceno à apetência do consumidor. Porque JFA corresponde exatamente à definição que dele dá o seu prefaciador (Eduardo Paz Ferreira): “um daqueles raros universitários que todos apreciam como colega, pela sua competência, seriedade, descrição, afabilidade e empenho académico” e, ainda, “um dos poucos economistas capazes de compreender a importância do diálogo com os cultores de outras ciências sociais e de reconhecer a importância e a necessidade da decisão política”.

O livro é pequeno (126 páginas incluindo o prefácio) e lê-se num repente, tanto mais que os três primeiros capítulos, embora interessantes, têm pouco de original em relação ao conhecimento adquirido e que o seu principal contributo vem no fim (capítulo 4 sobre a moeda única, sobretudo no tocante à adesão de Portugal, e capítulo 5 sobre o passado mais recente, o presente e o futuro).

A “superioridade moral” de JFA em relação à matéria em análise é inequívoca. Porque ele soube apontar o problema em devido tempo – já em 1991 afirmava que “a adesão ao SME significará na prática a integração de Portugal numa zona de moeda forte a nível mundial”, que isso “na melhor das hipóteses não incentivará a competitividade-preço das nossas exportações” e que “se simultaneamente se verificar uma liberalização do comércio da Comunidade com países terceiros esta perda de competitividade será agravada” – e resistir à “estúpida euforia” que se gerou na sociedade portuguesa com a aproximação da nossa adesão à moeda única.

Não obstante, subsiste em mim uma difusa sensação de estranheza que não consigo rechaçar, assim como que uma coisa do tipo de alguém ser capaz de acertar no resultado do jogo após a sua disputa. A minha intenção, insisto, é tudo menos injustiçar JFA, já que ele esteve sempre à frente de todos nós – oficiais do mesmo ofício e quejandos – na leitura do fundamental. Mas alguns enfoques argumentativos e os respetivos pesos relativos não deixam de evidenciar as suas variações, mais ou menos (im)percetíveis.

Dito isto, e ainda antes de ir à substância da obra, são de assinalar algumas afirmações corajosas por parte de JFA. Como quando refere que foi apoiante da adesão à CEE em 1986, “mas se a União fosse então a mesma que é hoje, a minha posição teria sido diferente”. Ou como quando sublinha que “não é verdade” que “a situação atual nada tem que ver com a participação na moeda única em si própria, mas com erros acumulados nas políticas seguidas”. Ou como quando indicia que Mitterrand “só deu o acordo da França à reunificação em troca do abandono do marco por parte da Alemanha” e assim cometeu o “erro de palmatória” de colocar a moeda única ao serviço do poder alemão. Ou como quando identifica a “convergência contranatura” de duas ideologias irmanadas no “mesmo ódio ao estado-nação – o neoliberalismo porque é estado, o federalismo porque é nação”. Ou como quando produz a frontal acusação de que “a culpa de o tratado [de Maastricht] ter sido aprovado cabe por inteiro aos partidos socialistas”. Ou como quando não evita uma denúncia forte das elites portuguesas – “espesso manto de iliteracia económica”, “suficiência bacoca” e “total ausência de sentido crítico” – e da passividade da gestão de então do Banco de Portugal.


Passemos à decisão portuguesa de aderir à moeda única, “e logo no chamado “pelotão da frente’”, um tópico em que JFA percorre e desmonta com clareza os principais argumentos favoráveis. Nem o euro criou nenhuma “espécie de guarda-chuva de proteção face à instabilidade monetária e financeira do resto do mundo” – a questão da balança com o exterior não deixou de existir e a zona euro não fornecia instrumentos de estabilização das economias –, nem o baixo custo do financiamento e a abundância do crédito induziu mais investimento – antes estimulou uma distorção em proveito dos não transacionáveis –, nem a redução dos custos ligados à instabilidade cambial mostrou dimensão palpável, nem participar no euro significou estar no centro da decisão política comunitária, nem se provou que a adesão espanhola devia ter “obrigado” Portugal a aderir também.

Quanto a alternativas, JFA refere como as duas sobrantes “uma mudança na Europa que permita a instituição de um federalismo capaz de apoiar as regiões deprimidas” – que rejeita por irrealista na atual conjuntura europeia e trágica em consequências para Portugal – ou “uma tomada de atitude de algum distanciamento face a uma Europa alemã”, que defende com duas vertentes: a saída do euro – que não da União Europeia – e o reforço de novas alianças não europeias.

Neste ponto, uma nova sensação difusa me assaltou, a de estar como que a ser levado a embarcar num voluntarismo à outrance, quase desesperado. Explico-me. Por um lado, eu ainda sou do tempo em que a desvalorização cambial passava por ser um fator de comportamento aditivo para a economia e as empresas portuguesas e não posso deixar de ver com ceticismo que a mesma possa hoje proporcionar “um grande golpe de rins”, “um intenso choque competitivo”. Por outro lado, eu não estou convencido do simplismo quase cartesiano com que JFA e outros defensores do abandono do euro definem as suas condições de viabilidade contornando uma imensidão de dificuldades políticas, institucionais, legais, económicas e sociais que dão por implicitamente conseguidas ou conseguíveis. Por último, eu acredito na imprescindibilidade de um corte com a asfixia europeia e de uma procura de outras parcerias, mas entendo que tal vai muito para além de declarações piedosas e só poderá algum dia ocorrer num contexto político dominado pelo afrontamento e através de um envolvimento supranacional mais alargado.

Termino: o que tem de ser tem muita força e a lucidez impõe a quem pensa que o assuma. E entre garantirmos um qualquer subótimo de saída controlada do euro ou dele sermos mais ou menos expulsos, incluindo aqui a permanência em situação de absoluta capitulação (segundo resgate, empobrecimento, união orçamental a funcionar, capatazes, etc.), o que será mais plausível à luz do que presentemente sabemos? Pessoal e infelizmente, tendo a estar bem mais na linha do meu amigo Alberto Castro no seu último artigo do JN – “sem um perdão parcial da dívida ou uma descida acentuada do seu custo (ou uma combinação das duas condições), o bem-estar dos portugueses (e o regime democrático?) estará comprometido por muito mais de uma década – do que de soluções que resultam numa atropelada e enganosa confusão de desejos pleonasticamente subjetivos com realidades duramente objetivas. Porque se é certo que os países não acabam, não o é menos que a miséria se propaga e tem muitos graus…

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