Há que reconhecer que o debate sobre a relação
entre dívida pública e crescimento económico abanou decisivamente a profissão e
a blogosfera económica, sobretudo na sequência do artigo crítico do trabalho de
2010 de Reinhart e Rogoff que Herndon, Ash e Pollin publicaram nos Working Papers da Universidade de Massachussets
– Amherst. Não me admiraria que Herndon tivesse as suas propinas de estudante
de doutoramento presenteadas pela Universidade, tamanha foi a visibilidade que
ela assumiu na sequência desse debate.
E o que impressiona é que quando se fala em
debate é de verdadeiro debate que se trata com a comunidade académica e os
jornais de grande tiragem como o New York
Times ou mesmo o Wall Street Journal
a acolherem nas suas páginas as ondas de choque e as réplicas da controvérsia.
Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff responderam a 25
de abril no New York Times a alguns
aspetos menos abonatórios da sua integridade que o debate acabou por gerar e o
jornal concede-lhes a permissão dupla de um artigo de resposta mais curto e um outro texto mais de natureza metodológica, o que ilustra bem a amplitude que a
controvérsia acabou por assumir.
Alguns aspetos na resposta de Reinhart e Rogoff
que merecem destaque, pois vêm na linha de algumas reflexões produzidas neste
blogue.
Invocando agora um artigo de 2012 publicado no Journal of Economic Perspectives,
Reinhart e Rogoff defendem-se com o facto de neste novo artigo os seus cálculos
não divergirem substancialmente dos de Herndon e companhia, mantendo a sua
confiança no limiar dos 90% como algo que muda consideravelmente as relações
entre dívida pública e crescimento económico.
Mas o que em meu entender é mais marcante na
defesa de Reinhart e Rogoff é a sua afirmação explícita que nunca insinuaram
que a relação de causalidade fosse apenas a da dívida pública elevada penalizar
o crescimento, antes consideraram sempre que a causalidade opera nos dois
sentidos e que “não há qualquer regra que se aplique em todos os tempos e em
todos os lugares”, sendo por isso possível admitir que uma situação estrutural
de baixo crescimento pode induzir um crescimento anómalo do peso da dívida pública.
Mas mais marcante ainda é a distanciação que os
autores reafirmam relativamente ao vício de utilização dos resultados do seu
artigo de 2010 e da sua investigação em geral para justificar as políticas de
austeridade que estão a ser praticadas nas economias do sul: “A discussão
marcadamente política, especialmente viva na última semana, equacionou
erradamente a nossa descoberta de uma relação negativa entre dívida e
crescimento como uma justificação irrepreensível da austeridade”. E no artigo
mais curto os autores retomam a ideia já avançada por Rogoff ao Expresso de que
em sua opinião se justificariam reestruturações das dívidas das economias da
Europa do Sul que poderiam envolver perdões parciais das dívidas soberanas
nesses países. Há que convir que não é coisa pouca.
Aliás, sempre achei que a crítica dos
determinismos associados à pesquisa de Reinhart e Rogoff não poderia ser
entendida como uma espécie de convite a uma gestão mais laxista da dívida numa
perspetiva atemporal. A questão tem sempre que ser vista no quadro da situação
globalmente recessiva a que um entendimento cego da consolidação orçamental
pode conduzir um espaço económico como o da União Europeia, com sérios reflexos
na capacidade de solvência internacional dos países devedores, o que seria
depositar instabilidade em cima de instabilidade.
A questão mais importante que a controvérsia
suscita é a de discutir as condições que transformam uma pesquisa económica em
bandeira pretensamente racionalizadora de políticas carenciadas de fundamentação
para justificar a penosidade que implicam, mesmo “aparentemente” contra a vontade
dos seus autores. Ou seja, perceber por que razão os autores da pesquisa
permitem que os seus resultados sejam apropriados por decisores carentes de
cobertura “científica” que não hesitam em interpretar incorretamente a sua
transferibilidade. Imaginar que um economista, do mais rigoroso intelectualmente
que possamos ambicionar, tem necessariamente que abster-se de discutir as implicações
políticas dos seus resultados é uma conceção peregrina. Basta ler o
desenvolvimento de toda a obra de Keynes para perceber que rigor teórico e intervenção
política podem coexistir sem danos colaterais para o rigor e para a nobreza da
intervenção. Por isso, gostaria que Reinhart e Rogoff tivessem assumido mais frontalmente
a denúncia da extrapolação indevida dos seus resultados antes da controvérsia
ter estalado. Não é bem a mesma coisa.
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