Numa sexta feira em que o primeiro-ministro
Coelho parece ter virado cordeiro, angelical e anunciando uma agenda para o
crescimento e emprego (sente-se no ar a temperatura de tanta massa de neurónios
em ebulição), que não é mais do que a derradeira tentativa para segurar o PS
num limbo de expectativa regulada, a minha atenção continua presa à semana de
todas as dificuldades para Reinhart e Rogoff, mais propriamente o abalo sobre
as suas evidências empíricas de relações entre a dívida pública e o crescimento
económico.
Os economistas que trabalham mais os longos períodos
da evolução económica, caso de Reinhart e Rogoff, não porque sejam
especialistas do crescimento de longo prazo, mas porque vão em busca de situações
de crise financeira e de endividamento nesse horizonte, derretem-se
literalmente por factos estilizados. Na
impossibilidade de poderem descobrir leis universais e a-históricas, procuram
em regra um sucedâneo bastante remoto dessas leis com a explicitação de regularidades
estatísticas de longo prazo, as quais funcionam também como um quadro de
requisitos para os modelos teóricos. Ou seja, se os modelos explicarem os
principais factos estilizados a sua validação sai substancialmente reforçada. A
história da teoria económica e a própria história económica tendem a revelar
que só grandes nomes da academia podem aspirar associar o seu nome a tais
factos (regularidades). É o caso, por exemplo, de Nicholas Kaldor, cujo nome
vem regularmente associado aos factos estilizados que marcaram a teoria do crescimento
económico pelo menos até aos anos 80. Para o leitor compreender melhor o
conceito, basta relembrar um dos factos estilizados de Kaldor: a tendência sólida
de longo prazo para que o progresso técnico se traduza por uma subida
continuada da produtividade do fator trabalho, o que é a mesma coisa que dizer
que, no longo prazo, a mesma unidade de produto pode ser produzida com menor
incorporação de horas de trabalho. Entende-se a honra de ter o nome associado a
um facto estilizado: durante toda uma determinada época, toda a teoria do
crescimento visará explicar aquela regularidade. Os factos estilizados são uma
oportunidade de ter um lugar na história.
A minha interpretação do caso Reinhart-Rogoff é
que, talvez sem intenção deliberada, estes economistas quiseram ter o seu nome
associado a um facto estilizado, o já célebre limiar dos 90% de peso da dívida
pública no PIB, a partir do qual toda a anemia de crescimento estaria
explicada. Isto não invalida que Reinhart e Rogoff não possam ficar na história,
por outros motivos, como por exemplo o seu estudo meditado e profundo das
crises financeiras e do modo como os países e a economia mundial as superaram. Do
pretenso facto estilizado ao ícone fundamentador do apertar do cinto para
desalavancagem do endividamento público vai um pequeno passo e talvez os dois
economistas não se tenham apercebido de quão pequeno era esse passo.
Nos últimos dias, têm sido publicadas críticas do
trabalho de Reinhart e Rogoff bem mais duras do que a identificação do erro fatídico
do EXCEL. A identificação deste erro terá conduzido a universidade de
Massachussets – Amherst não direi do mais completo anonimato, mas de algum
desconhecimento ao estrelato. O gráfico acima constitui um dos mais divulgados na blogosfera da economia dos últimos dias e deve-se a um estudante de doutoramento em Berkeley Owen Zidar) provavelmente sob a influência crítica de
Bradford DeLong (é por estas razões que estudar em sítios como Berkeley não é o
mesmo que o fazer em Lisboa ou no Porto). O gráfico trabalha melhor a questão
dos períodos temporais para estabelecer as correlações necessárias. Como DeLong o assinala, não há qualquer vestígio da presença do famigerado limiar dos 90%.
Mas o criticismo mais virulento vem da evidência
de que a variável “Dívida Pública /PIB” não é só numerador. Tem também um
denominador. E quando este se encontra fortemente deprimido por outras razões
que não as da dívida (o nosso caso, por exemplo) a causalidade pode evoluir no
sentido contrário, isto é, do produto para a dívida e não o contrário. É
verdade que Reinhart e Rogoff falam de associação de variáveis e não de
causalidade. Mas hoje nada pode ser escondido, com o potencial de informação. Alguém
andou a esgravatar audições que Rogoff concedeu a senadores republicanos no Congresso
americano e concluiu que para os colegas Rogoff fala de associação entre variáveis
mas para político ouvir é de causalidade que fala. E aqui o caldo está entornado.
Porque falar de associação desculparia Reinhart e Rogoff do aproveitamento que
os falcões da austeridade e da desalavancagem pública fizeram dos resultados. Mas
deixar a palavra descair para a causalidade já não os põe a salvo de poderem
ser os racionalizadores de uma das maiores burrices de política económica que a
história económica acolherá.
Dupla infelicidade. O facto estilizado parece ter
ruído. E, para mais, a solidez do conceito de causalidade que Reinhart e Rogoff
terão internalizado deixa bastante a desejar.
Via mail do amigo Professor Leonardo Costa, chega-me uma citação atribuída a Kenneth Rogoff (não consegui localizar e validar) que poderá ser útil ao autor em semana tão para baixo.
O título que
o Leonardo propõe é curiosamente o de Lições de xadrez por Kennetth Rogoff:
“Primeira:
a importância de me manter calmo em situações difíceis, mesmo depois de se
cometer um erro.
Segunda:
independentemente de achar que compreende muito bem uma dada posição, deve ter
sempre em conta que há vários níveis de complexidade, escondidos. Para os
economistas, esta segunda lição implica que é importante ser humilde, e
compreender bem a diferença entre ter uma opinião forte bem fundamentada e ser
demasiado confiante em si próprio.
Terceira:
a importância de ter um plano estratégico de longo prazo e não se focalizar
exclusivamente nos problemas de curto prazo.”
Surpreendente, não?
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