quarta-feira, 17 de abril de 2013

A RELAÇÃO DÍVIDA – CRESCIMENTO AO RUBRO

(O gráfico de todas as polémicas, figura 2 de Growth in a Time of Debt, by Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, NBER, 2010)


Se não fora as implicações que daqui decorrem para as nossas vidas, sobretudo dos menos protegidos socialmente, os tempos estariam de feição para o debate das ideias económicas. Mas nunca perdendo de vista a primeira questão, há de facto domínios em que o debate está ao rubro.
Na berlinda está hoje a nos últimos tempos seminal obra de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff sobre as relações entre dívida e crescimento económico, já aqui neste blogue repetidas vezes referenciada. Atalhando para o essencial, a obra destes dois economistas, largamente sintetizada no This Time is Different – Eight Centuries of Financial Folly (Princeton University Press), abundantemente referenciada por Francisco Louçã num dos seus últimos comentários políticos, mas sobretudo referenciada a partir do seu artigo de 2010 “Growth in a Time of Debt) tem sido objeto de duas interpretações de sentido oposto e com invocadores diversos em campos opostos:
  • Os austeritaristas (ou falcões da austeridade a todo o preço) utilizam sobretudo a evidência recolhida pelos dois economistas sobre os impactos no crescimento de situações vividas por países com peso da dívida no PIB acima de 90%, que atiram para performances de crescimento significativamente abaixo dos mais comedidamente endividados (abaixo dos 90%); os falcões encontram nesta evidência uma espécie de redenção para os sacrifícios impostos;
  • Pelo contrário, os críticos desta posição têm vindo a destacar a não menos importante evidência trazida por Reinhart e Rogoff de que as recuperações pós grandes crises financeiras são historicamente muito mais lentas e moderadas, destacando-se ainda a ideia de que praticamente todos os exemplos de crises financeiras implicaram reorganização da dívida (não importa a modalidade concreta; foi esta por exemplo a invocação de Louçã e o próprio Rogoff em entrevista ao Expresso já aqui comentada se apressou a demarcar-se da alegada validação das teses da austeridade a todo o preço a partir dos resultados da sua pesquisa.
Isto poderia ter ficado por aqui, ou seja, pela não conciliação possível, como acontece frequentemente, dividindo irremediavelmente os economistas.
Mas o que aconteceu é que três economistas da Universidade de Massachussets –Amherst, Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin resolveram descascar à lupa o artigo de 2010 de Reinhart e de Rogoff e encontraram inconsistências estatísticas, talvez involuntárias que atalhando também para o essencial omite por erro de Excel alguns países das médias de crescimento encontradas e do uso dessas médias e não das medianas de países. O seu artigo pode ser encontrado aqui e uma divulgação escrita para o FinancialTimes aqui. Herndon, Ash e Pollin mostram, por exemplo, que a simples utilização de um ano de crescimento negativo da Nova Zelândia em 1951 de -7,6% produz resultados devastadores nas médias consideradas. Os números alternativos encontrados por estes autores situam o diferencial de crescimento para os endividados acima de 90% do PIB em valores bastante mais baixos do que os de Reinhart e Rogoff. Embora reconhecendo que a obra de Reinhart e Rogoff não implica a defesa da austeridade a todo o custo, concluem que: “Não estamos a sugerir que os governos se endividem à tripa forra e gastem sem critério. Mas o défice público, prosseguido com critério, continua a ser o único e mais eficaz instrumento para combater o desemprego em massa provocado por recessões severas. A investigação recente dos Professores Reinhart e Rogoff, em conjunto com todos os argumentos conexos invocados pelos proponentes da austeridade, não contradiz em nada este ponto fundamental.”
A defesa de Reinhart e Rogoff é corajosa e pode ser encontrada aqui. Reconhecem o erro detetado por Herndon, Ash e Pollin, reconhecem também que usando os crescimentos medianos e não os médios o diferencial de crescimento entre os mais e os menos endividados é menor, aliás como um artigo posterior de 2012 o ilustra. Mas defendem que mesmo neste novo quadro uma diferença de 1 ponto percentual pode ter efeitos acumulados devastadores em períodos longos.
O debate está ao rubro. Erros, omissões seletivas, excessos de reverência face aos números e más ou viciadas interpretações dos mesmos são o pão nosso de cada dia no universo da economia empírica comandado pela econometria. Não poderemos mesmo assim prescindir desse universo. Mas não podemos seguramente ficar dele dependentes e transformar a política económica e social na experimentação natural que os economistas gostariam de ter. Pelo menos a investigação nas ciências naturais e da vida tem um código ético severo. O que abunda por aí no universo da economia empírica é a completa ausência dessa ética, à espera de uma benesse de um governante qualquer necessitado de redenção ou de um confessionário proporcionado pela econometria e disposto a pagar por isso. É por isso que a formação em economia não pode estar à mercê destes mercenários dos alfas, betas e símbolos mais complexos. Dói assistir a alguns encontros científicos em que “jovens” investigadores esgrimem valores de parâmetros, técnicas de estimação e coisas mais sofisticadas com desenvoltura, mas sem a mínima noção teórica e conceptual do que estão a trabalhar por não terem referenciais de formação. Leram vulgatas e tiveram aulas de vulgarizadores apressados. Nunca leram no original Adam Smith, David Ricardo, Keynes ou Schumpeter. Refugiam-se nos métodos quantitativos para disfarçar a sua ignorância.
A tragédia é que muita da governação que anda por aí tem hoje uma relação de forte cumplicidade com esta gente. Hirschman, nosso patrono, dizia que uma das causas da fase de declínio da economia do desenvolvimento foi provocada entre outras coisas pela crise de consciência dos que viram os resultados das suas prescrições de política gerar estados corruptos, sociedades injustas e desiguais, economias estagnadas, inflações descontroladas e outras deformações. Eram outros tempos. Havia consciência entre os economistas de mainstream, o que vai rareando por aí.

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