(O gráfico de todas as polémicas, figura 2 de Growth in a Time of Debt, by Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, NBER, 2010)
Se não fora as implicações que daqui decorrem
para as nossas vidas, sobretudo dos menos protegidos socialmente, os tempos
estariam de feição para o debate das ideias económicas. Mas nunca perdendo de
vista a primeira questão, há de facto domínios em que o debate está ao rubro.
Na berlinda está hoje a nos últimos tempos
seminal obra de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff sobre as relações entre dívida
e crescimento económico, já aqui neste blogue repetidas vezes referenciada. Atalhando
para o essencial, a obra destes dois economistas, largamente sintetizada no This Time is Different – Eight Centuries of
Financial Folly (Princeton University Press), abundantemente referenciada
por Francisco Louçã num dos seus últimos comentários políticos, mas sobretudo
referenciada a partir do seu artigo de 2010 “Growth in a Time of Debt) tem sido
objeto de duas interpretações de sentido oposto e com invocadores diversos em
campos opostos:
- Os austeritaristas (ou falcões da austeridade a todo o preço) utilizam sobretudo a evidência recolhida pelos dois economistas sobre os impactos no crescimento de situações vividas por países com peso da dívida no PIB acima de 90%, que atiram para performances de crescimento significativamente abaixo dos mais comedidamente endividados (abaixo dos 90%); os falcões encontram nesta evidência uma espécie de redenção para os sacrifícios impostos;
- Pelo contrário, os críticos desta posição têm vindo a destacar a não menos importante evidência trazida por Reinhart e Rogoff de que as recuperações pós grandes crises financeiras são historicamente muito mais lentas e moderadas, destacando-se ainda a ideia de que praticamente todos os exemplos de crises financeiras implicaram reorganização da dívida (não importa a modalidade concreta; foi esta por exemplo a invocação de Louçã e o próprio Rogoff em entrevista ao Expresso já aqui comentada se apressou a demarcar-se da alegada validação das teses da austeridade a todo o preço a partir dos resultados da sua pesquisa.
Isto poderia ter ficado por aqui, ou seja, pela não
conciliação possível, como acontece frequentemente, dividindo irremediavelmente
os economistas.
Mas o que aconteceu é que três economistas da
Universidade de Massachussets –Amherst, Thomas Herndon, Michael Ash e Robert
Pollin resolveram descascar à lupa o artigo de 2010 de Reinhart e de Rogoff e
encontraram inconsistências estatísticas, talvez involuntárias que atalhando
também para o essencial omite por erro de Excel alguns países das médias de
crescimento encontradas e do uso dessas médias e não das medianas de países. O seu artigo pode ser encontrado aqui e uma divulgação escrita para o FinancialTimes aqui. Herndon, Ash e Pollin mostram, por exemplo, que a simples utilização
de um ano de crescimento negativo da Nova Zelândia em 1951 de -7,6% produz resultados
devastadores nas médias consideradas. Os números alternativos encontrados por
estes autores situam o diferencial de crescimento para os endividados acima de
90% do PIB em valores bastante mais baixos do que os de Reinhart e Rogoff. Embora
reconhecendo que a obra de Reinhart e Rogoff não implica a defesa da
austeridade a todo o custo, concluem que: “Não estamos a sugerir que os governos se endividem à
tripa forra e gastem sem critério. Mas o défice público, prosseguido com critério,
continua a ser o único e mais eficaz instrumento para combater o desemprego em
massa provocado por recessões severas. A investigação recente dos Professores
Reinhart e Rogoff, em conjunto com todos os argumentos conexos invocados pelos
proponentes da austeridade, não contradiz em nada este ponto fundamental.”
A defesa de Reinhart e Rogoff é corajosa e pode ser encontrada aqui. Reconhecem o erro detetado por Herndon, Ash e Pollin,
reconhecem também que usando os crescimentos medianos e não os médios o
diferencial de crescimento entre os mais e os menos endividados é menor, aliás
como um artigo posterior de 2012 o ilustra. Mas defendem que mesmo neste novo
quadro uma diferença de 1 ponto percentual pode ter efeitos acumulados
devastadores em períodos longos.
O debate está ao rubro. Erros, omissões
seletivas, excessos de reverência face aos números e más ou viciadas
interpretações dos mesmos são o pão nosso de cada dia no universo da economia
empírica comandado pela econometria. Não poderemos mesmo assim prescindir desse
universo. Mas não podemos seguramente ficar dele dependentes e transformar a
política económica e social na experimentação natural que os economistas
gostariam de ter. Pelo menos a investigação nas ciências naturais e da vida tem
um código ético severo. O que abunda por aí no universo da economia empírica é
a completa ausência dessa ética, à espera de uma benesse de um governante
qualquer necessitado de redenção ou de um confessionário proporcionado pela
econometria e disposto a pagar por isso. É por isso que a formação em economia
não pode estar à mercê destes mercenários dos alfas, betas e símbolos mais
complexos. Dói assistir a alguns encontros científicos em que “jovens”
investigadores esgrimem valores de parâmetros, técnicas de estimação e coisas
mais sofisticadas com desenvoltura, mas sem a mínima noção teórica e conceptual
do que estão a trabalhar por não terem referenciais de formação. Leram vulgatas
e tiveram aulas de vulgarizadores apressados. Nunca leram no original Adam
Smith, David Ricardo, Keynes ou Schumpeter. Refugiam-se nos métodos
quantitativos para disfarçar a sua ignorância.
A tragédia é que muita da governação que anda por
aí tem hoje uma relação de forte cumplicidade com esta gente. Hirschman, nosso
patrono, dizia que uma das causas da fase de declínio da economia do
desenvolvimento foi provocada entre outras coisas pela crise de consciência dos
que viram os resultados das suas prescrições de política gerar estados
corruptos, sociedades injustas e desiguais, economias estagnadas, inflações descontroladas
e outras deformações. Eram outros tempos. Havia consciência entre os
economistas de mainstream, o que vai rareando por aí.
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