quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

DESIGUALDADES (III)



Volto ao tema das desigualdades porque me parece que ele exige e merece debate, sobretudo porque a discussão que tem emergido no debate político é pobre de referências analíticas e pouco esclarecida teórica e conceptualmente.
Escrevo numa viagem de Alfa Pendular, que está cada vez menos pendular e estável, e por isso espero que, no meio de tanta instabilidade, seja capaz de manter o rumo da argumentação.
Confesso ao meu colega de blogue que tinha já referenciado o artigo de José Manuel Fernandes no Público, mas também já há muito tempo desisti de perder tempo com alguém tão desonesto intelectualmente, afinal o produto de uma agenda pessoal de que não se sabe muito bem quem é a “voz do dono” e seu amo e senhor. Por isso, esta insistência no tema resulta do caráter intrigante que ele sempre revestiu para a minha reflexão e depois da modesta pretensão (de quem é pouco lido ou ouvido) para tentar desmistificar desonestidades intelectuais do tipo JMF e quejandos.
Entendamo-nos primeiro sobre o significado das desigualdades ou da desigualdade no âmbito do que os efeitos das políticas de austeridade (ou se quiserem das políticas de consolidação abrupta de contas públicas em termos anti-cíclicos, isto é em tempos em que empresas e famílias estão a corrigir endividamento e por isso necessitados de políticas públicas compensatórias) determinam. E aqui convém distinguir com clareza o que são efeitos absolutos de empobrecimento dos efeitos relativos, ou seja dos efeitos provocados em diferentes grupos sociais. Os primeiros, convém não esquecer, mesmo que se trate de efeitos absolutos similares penalizam sempre mais os que menos têm. E aqui não há dúvida de que estamos perante um empobrecimento desproporcionado da sociedade portuguesa para os resultados conseguidos. Não há missão da Troika ou discurso demagógico das autoridades comunitárias que consigam branquear esta falha: para os resultados conseguidos em termos de sustentabilidade da dívida face aos famigerados e implacáveis mercados o empobrecimento que foi infligido aos portugueses não tem racionalidade justificativa possível. E não estamos aqui a considerar os efeitos dinâmicos deste empobrecimento. Efeitos dinâmicos sobre o produto potencial da economia nos próximos tempos, desincentivos à inovação introduzidos pelo rebaixamento de salários nas novas qualificações e desincentivos ao investimento em formação e capital humano que as famílias portuguesas estavam a realizar e cujo retorno exige hoje o regresso à diáspora. Não branqueiem o que é cristalino.
O tema dos efeitos relativos, ou seja da desigualdade, é de um outro âmbito, mas complementar deste. Em primeiro lugar, a investigação económica enfrenta dificuldades de grande monta para encontrar categorias estatísticas que constituam aproximações credíveis dos grupos sociais. Por isso, os estudos quantitativos da desigualdade enfrentam a necessidade imperiosa de ser completados com trabalho de terreno centrado, esse sim, em categorias sociológicas e não apenas estatísticas (grupos de população, quintis, decis ou percentis).
Aqui o referencial comparativo é sugestivo. Os restantes países sujeitos a resgate ou a simulacros do mesmo (Espanha), atingidos pela mesma ofensiva do empobrecimento punitivo, viram a desigualdade aumentar medida por diferentes indicadores. Para além disso, os resultados da crise financeira de 2007/08 e políticas de teor semelhante assumidas na economia americana, apesar da salvaguarda de algumas políticas de Obama, transportaram para a opinião pública evidências seguras da batalha do 1% versus os 99%, com clara supremacia dos primeiros. Com todo este caldo, seria de esperar algo de similar na sociedade portuguesa, no contexto da tal autoestrada do desenho viral de Pacheco Pereira que simbolizava a grande transformação das relações sociais desfavoráveis ao trabalho.
Mas a situação portuguesa é mais complexa e fina do que parece, exigindo as tais pinças analíticas de que ontem falava.
Relativamente ao post de ontem, trabalhei um indicador de síntese de desigualdade, que tem os seus próprios limites como todos os indicadores de desigualdade, o coeficiente de GINI e calculei-o com o método mais expedito (associado a dois grandes economistas do desenvolvimento, minhas referências de sempre, Fei e Ranis), método compatível com uma viagem de Alfa Pendular. A imagem que abre este post mostra a evolução do coeficiente (que varia entre 0 e 1) para os anos de 2007, 2009, 2011 e 2012. O que o gráfico nos mostra é que, durante o período do memorando da Troika coberto pela informação disponível (2011 e 2012), o coeficiente tem um ligeiro agravamento que, entretanto, não é suficiente para apagar a melhoria que o indicador vinha evidenciando de períodos anteriores. Esta melhoria de períodos anteriores está perfeitamente documentada em investigação séria dos grandes especialistas da desigualdade em Portugal, Carlos Farinha Rodrigues e José António Pereirinha, o primeiro com um grande trabalho publicado sobre o assunto pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (http://ffms.pt/estudo/19/desigualdade-em-portugal).
Qual é então a minha interpretação para estas evidências? Bem sei que isto pode parecer um elogio póstumo ao governo de Sócrates, mas aqui não tenho conflito de interesses, pois o dito não me deve nada e eu muito menos a ele. O que acontece é que algumas políticas sociais do governo de Sócrates foram largamente distributivas e melhoraram consideravelmente a posição relativa dos percentis mais pobres. O que significa que as políticas de austeridade encontraram um buffer de desigualdade diminuída e por isso apesar da desigualdade aumentar ligeiramente em termos médios com o Memorando de entendimento (?) (de imposição), o agravamento ainda não é suficientemente gravoso para anular completamente a referida almofada. Depois, o facto de algumas remunerações e pensões terem ficado fora da órbita dos cortes pode ter também produzido algum efeito de contenção. Mas atenção: não temos dados de 2013 e muito menos do ano de todas as ameaças 2014. E não ignoremos que apesar das melhorias anteriormente observadas ao Memorando, a desigualdade em Portugal era das mais elevadas no contexto da União Europeia.
Já aqui referi que, em trabalho que realizei com a minha colega Maria Pilar Gonzalez para a OIT Genève sobre os efeitos da crise e das políticas de austeridade sobre o modelo social europeu (a publicar em 2014 pela Edward Elgar) e com conferência anunciada para Bruxelas na Comissão Europeia em 27 e 28 de fevereiro próximos), nos tínhamos apercebido das particularidades da economia portuguesa. Tínhamos também experimentado a dificuldade de quantificar a tão falada degradação da posição social da classe média portuguesa, o que não significa que ela não exista, sobretudo atendendo ao peso que funcionários públicos e pensionistas apresentam nessa mesma classe média.
E aqui não pode ignorar-se investigação realizada pela Comissão Europeia (que passou despercebida em Portugal como aliás passa a maioria dos temas europeus): Silvia Avram e outros (2013) “The Distributional Effects of Fiscal Consolidation in Nine Countries”, EUROMOD Working Paper No. EM 2/13

O post já vai longo e por isso limito-me a referir evidências desse estudo, que analisa os efeitos por decis de população das medidas com impacto no rendimento disponível das famílias, tendo por base o rendimento que teriam em 2012 na ausência das medidas de austeridade. O primeiro decil tem uma quebra de cerca de 5,5% e só a partir do sétimo decil encontramos quedas iguais ou superiores ao do primeiro. O que o gráfico sugere é uma curva em U invertido, indicando que os cortes foram progressivos, sobretudo a partir do 7º decil. Portugal é dos países com maiores cortes de benefícios e, explicita o relatório, em benefícios em que os indivíduos têm de fazer prova de benefícios (means tested benefits), mas também nas pensões públicas.
Moral da história: o post já vai longo, o Alfa continua instável e o tema tem ainda pano para mangas. Voltaremos a ele.

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