Volto ao tema das desigualdades porque me parece que ele exige e merece debate, sobretudo porque a discussão que tem emergido no debate político é pobre de referências analíticas e pouco esclarecida teórica e conceptualmente.
Escrevo numa viagem de Alfa Pendular, que está
cada vez menos pendular e estável, e por isso espero que, no meio de tanta
instabilidade, seja capaz de manter o rumo da argumentação.
Confesso ao meu colega de blogue que tinha já
referenciado o artigo de José Manuel Fernandes no Público, mas também já há
muito tempo desisti de perder tempo com alguém tão desonesto intelectualmente,
afinal o produto de uma agenda pessoal de que não se sabe muito bem quem é a
“voz do dono” e seu amo e senhor. Por isso, esta insistência no tema resulta do
caráter intrigante que ele sempre revestiu para a minha reflexão e depois da
modesta pretensão (de quem é pouco lido ou ouvido) para tentar desmistificar
desonestidades intelectuais do tipo JMF e quejandos.
Entendamo-nos primeiro sobre o significado das
desigualdades ou da desigualdade no âmbito do que os efeitos das políticas de
austeridade (ou se quiserem das políticas de consolidação abrupta de contas
públicas em termos anti-cíclicos, isto é em tempos em que empresas e famílias
estão a corrigir endividamento e por isso necessitados de políticas públicas
compensatórias) determinam. E aqui convém distinguir com clareza o que são
efeitos absolutos de empobrecimento dos efeitos relativos, ou seja dos efeitos
provocados em diferentes grupos sociais. Os primeiros, convém não esquecer,
mesmo que se trate de efeitos absolutos similares penalizam sempre mais os que
menos têm. E aqui não há dúvida de que estamos perante um empobrecimento
desproporcionado da sociedade portuguesa para os resultados conseguidos. Não há
missão da Troika ou discurso demagógico das autoridades comunitárias que
consigam branquear esta falha: para os resultados conseguidos em termos de
sustentabilidade da dívida face aos famigerados e implacáveis mercados o
empobrecimento que foi infligido aos portugueses não tem racionalidade
justificativa possível. E não estamos aqui a considerar os efeitos dinâmicos
deste empobrecimento. Efeitos dinâmicos sobre o produto potencial da economia
nos próximos tempos, desincentivos à inovação introduzidos pelo rebaixamento de
salários nas novas qualificações e desincentivos ao investimento em formação e
capital humano que as famílias portuguesas estavam a realizar e cujo retorno
exige hoje o regresso à diáspora. Não branqueiem o que é cristalino.
O tema dos efeitos relativos, ou seja da
desigualdade, é de um outro âmbito, mas complementar deste. Em primeiro lugar,
a investigação económica enfrenta dificuldades de grande monta para encontrar
categorias estatísticas que constituam aproximações credíveis dos grupos
sociais. Por isso, os estudos quantitativos da desigualdade enfrentam a
necessidade imperiosa de ser completados com trabalho de terreno centrado, esse
sim, em categorias sociológicas e não apenas estatísticas (grupos de população,
quintis, decis ou percentis).
Aqui o referencial comparativo é sugestivo. Os
restantes países sujeitos a resgate ou a simulacros do mesmo (Espanha),
atingidos pela mesma ofensiva do empobrecimento punitivo, viram a desigualdade
aumentar medida por diferentes indicadores. Para além disso, os resultados da
crise financeira de 2007/08 e políticas de teor semelhante assumidas na
economia americana, apesar da salvaguarda de algumas políticas de Obama,
transportaram para a opinião pública evidências seguras da batalha do 1% versus
os 99%, com clara supremacia dos primeiros. Com todo este caldo, seria de
esperar algo de similar na sociedade portuguesa, no contexto da tal autoestrada
do desenho viral de Pacheco Pereira que simbolizava a grande transformação das
relações sociais desfavoráveis ao trabalho.
Mas a situação portuguesa é mais complexa e fina
do que parece, exigindo as tais pinças analíticas de que ontem falava.
Relativamente ao post de ontem, trabalhei um indicador de síntese de desigualdade,
que tem os seus próprios limites como todos os indicadores de desigualdade, o
coeficiente de GINI e calculei-o com o método mais expedito (associado a dois
grandes economistas do desenvolvimento, minhas referências de sempre, Fei e
Ranis), método compatível com uma viagem de Alfa Pendular. A imagem que abre
este post mostra a evolução do
coeficiente (que varia entre 0 e 1) para os anos de 2007, 2009, 2011 e 2012. O
que o gráfico nos mostra é que, durante o período do memorando da Troika
coberto pela informação disponível (2011 e 2012), o coeficiente tem um ligeiro
agravamento que, entretanto, não é suficiente para apagar a melhoria que o
indicador vinha evidenciando de períodos anteriores. Esta melhoria de períodos
anteriores está perfeitamente documentada em investigação séria dos grandes
especialistas da desigualdade em Portugal, Carlos Farinha Rodrigues e José
António Pereirinha, o primeiro com um grande trabalho publicado sobre o assunto
pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (http://ffms.pt/estudo/19/desigualdade-em-portugal).
Qual é então a minha interpretação para estas
evidências? Bem sei que isto pode parecer um elogio póstumo ao governo de
Sócrates, mas aqui não tenho conflito de interesses, pois o dito não me deve
nada e eu muito menos a ele. O que acontece é que algumas políticas sociais do
governo de Sócrates foram largamente distributivas e melhoraram
consideravelmente a posição relativa dos percentis mais pobres. O que significa
que as políticas de austeridade encontraram um buffer de desigualdade diminuída e por isso apesar da desigualdade
aumentar ligeiramente em termos médios com o Memorando de entendimento (?) (de
imposição), o agravamento ainda não é suficientemente gravoso para anular
completamente a referida almofada. Depois, o facto de algumas remunerações e
pensões terem ficado fora da órbita dos cortes pode ter também produzido algum
efeito de contenção. Mas atenção: não temos dados de 2013 e muito menos do ano
de todas as ameaças 2014. E não ignoremos que apesar das melhorias anteriormente observadas ao Memorando, a desigualdade em Portugal era das mais elevadas no contexto da União Europeia.
Já aqui referi que, em trabalho que realizei com
a minha colega Maria Pilar Gonzalez para a OIT Genève sobre os efeitos da crise
e das políticas de austeridade sobre o modelo social europeu (a publicar em
2014 pela Edward Elgar) e com conferência anunciada para Bruxelas na Comissão
Europeia em 27 e 28 de fevereiro próximos), nos tínhamos apercebido das
particularidades da economia portuguesa. Tínhamos também experimentado a
dificuldade de quantificar a tão falada degradação da posição social da classe
média portuguesa, o que não significa que ela não exista, sobretudo atendendo
ao peso que funcionários públicos e pensionistas apresentam nessa mesma classe
média.
E aqui não pode ignorar-se investigação realizada
pela Comissão Europeia (que passou despercebida em Portugal como aliás passa a
maioria dos temas europeus): Silvia Avram e outros (2013) “The Distributional Effects of Fiscal
Consolidation in Nine Countries”, EUROMOD
Working Paper No. EM 2/13.
O post já vai longo e por isso limito-me a
referir evidências desse estudo, que analisa os efeitos por decis de população
das medidas com impacto no rendimento disponível das famílias, tendo por base o
rendimento que teriam em 2012 na ausência das medidas de austeridade. O
primeiro decil tem uma quebra de cerca de 5,5% e só a partir do sétimo decil
encontramos quedas iguais ou superiores ao do primeiro. O que o gráfico sugere é
uma curva em U invertido, indicando que os cortes foram progressivos, sobretudo
a partir do 7º decil. Portugal é dos países com maiores cortes de benefícios e,
explicita o relatório, em benefícios em que os indivíduos têm de fazer prova de
benefícios (means
tested benefits), mas também nas pensões públicas.
Moral da história: o post já vai longo, o Alfa continua instável e o tema tem ainda pano
para mangas. Voltaremos a ele.
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