sábado, 4 de janeiro de 2014

MEROS SINAIS VERSUS TENDÊNCIAS PESADAS



José Pacheco Pereira tem-se destacado como o mais consistente e virulento crítico do discurso instalado no governo e em todos que reproduzem o discurso do poder sobre os sinais da retoma e sobretudo sobre o branqueamento implícito que essa abordagem representa dos custos devastadores que a receita da TROIKA e do Governo irá provocar na economia e na sociedade portuguesa.
JPP situa-se num outro plano da análise política e do discurso do poder que nenhum outro comentador no ativo e com audiência é capaz de alcançar, sobretudo porque o faz com um suporte cultural e de conhecimento histórico incomum no universo dos analistas. A sua sugestiva invocação do Cândido de Voltaire e do seu mentor Pangloss, na crónica de hoje do Público, é bem ilustrativa desse outro plano de análise. A sua desconstrução é impiedosa e consegue nesse registo meter no mesmo saco governo e oposição, incluindo a que não se situa no espaço da governação. Neste âmbito, este modesto economista com algumas pretensões culturais rende-se ao sentido crítico de JPP.
Mas a abordagem aqui em questão suscita temas de interesse a cujo comentário o economista não pode furtar-se e em torno dos quais as posições de JPP carecem de alguma discussão.
Comecemos pelos sinais de retoma. Eles existem mas não têm o significado que os laudatórios da governação atual lhe querem atribuir. A atividade económica recupera mas a situação alcançada está longe de estar ao nível do antes do resgate. Além disso, não existe nenhum nexo causal credível entre a recuperação agora observada e as políticas de ajustamento. Primeiro, a pequena reanimação da procura interna observada em 2013 pode ter a sua justificação nos limites que o Tribunal Constitucional impôs à sanha da austeridade e pode até lançar-se a hipótese que algumas famílias anteciparam compras a contar com o agravamento da austeridade associada ao orçamento de 2014. Segundo, prosseguiu a resiliência das exportações que tudo indica transcende o fenómeno Galp, até porque ela se verifica por exemplo na região Norte e aí é de resiliência pura que se trata. No entanto, é praticamente impossível associar essa resiliência à política governamental e sabemos que as empresas exportadoras têm em média maior dimensão, maior produtividade e pagam melhor que o setor não exportador. Quando muito poderemos registar algum efeito dos instrumentos de política pública de apoio à inovação e internacionalização proporcionados pelos Fundos Estruturais.
A questão fundamental será então a de saber se os sinais da recuperação são apenas um simples reatar de ciclo económico, mesmo que anémico por força da austeridade, ou se, pelo contrário, a economia portuguesa está de facto a mudar.
A questão é complexa, devido essencialmente às seguintes razões:
  • A mudança do perfil de especialização da economia portuguesa está a ocorrer já há algum tempo, mas é lenta, muito lenta e pode ter sido penalizada pelos custos da desvalorização nominal interna, pois como temos aqui insistido o rebaixamento do custo do trabalho é o pior incentivo à inovação;
  • Essa mudança tem sido operada essencialmente nos ramos exportadores a que corresponde o saber operar nos mercados internacionais e que alguns, errada e pejorativamente, designam de tradicionais: o Professor José Mendes, vice-reitor para a inovação e empreendedorismo da Universidade do Minho, designa esse processo sugestivamente de “inovação de largo espectro na tradição”, potencial que está longe de estar plenamente aproveitado e no qual as regiões Norte e Centro predominam;
  • As atividades ligadas ao mercado interno experimentaram com a austeridade desregrada uma sobredestruição desproporcionada face á reorientação de recursos que a economia portuguesa necessitaria sempre de fazer;
  • Todo o restante processo de emergência de novas atividades exportadoras fora do saber operar em mercado externo instalado e induzido por empreendedorismo de base tecnológica é lento, fortemente indeterminado, pois exige escala e sinergias que só o tempo dirá se vão concretizar-se ou não;
  •   Todo o impressionismo que a comunicação social tem veiculado sobre o empreendedorismo carece de escala para se traduzir em mudança estrutural e, além disso, não existe informação que nos permita avaliar a sustentabilidade da maioria dos projetos que alimentam a ideologia do empreendedorismo apregoada pela maioria.
Dos elementos disponíveis, os dados das Estatísticas do Emprego sobre a evolução dos três primeiros trimestres de 2013, particularmente do comportamento entre o segundo e o terceiro trimestres, fornecem alguns elementos relevantes:
  • O aumento de 48000 indivíduos empregados é essencialmente assegurado através de empregos a indivíduos com formação superior (+ 40.800) e com formação secundária e pós secundária (+ 43.600), com descida da população empregada com formação até ao 3º ciclo do básico (- 36.200);
  • São essencialmente os serviços a explicar esse aumento da população empregada, com relevo para a hotelaria e restauração, mas também para as atividades de informação e comunicação, de consultoria e científicas e comércio por grosso;
  • Em termos de profissões são essencialmente os técnicos e profissionais de nível intermédio que ocupam um lugar de realce na criação de emprego (+ 37.300), seguido de pessoal administrativo (+ 19.000) e operadores de instalações e trabalhadores de montagem (+ 8.100);
  • O tipo de emprego assegurado é essencialmente a tempo total e com contratos sem termo.
O que ressalta destes números é que, para além do aumento de população empregada ser ainda de reduzida expressão e por isso não totalmente informativo sobre as mudanças em curso, eles não permitem ainda ilustrar a tal desejada mudança de perfil de especialização. Teremos de analisar em particular o comportamento da indústria transformadora, que praticamente não contribuiu para o aumento de 48.000 indivíduos empregados (+ 2.400), para perceber se a mudança está em curso.
Por tudo isto, JPP tem razão em denunciar criticamente o discurso da pretensa mudança estrutural em curso, pelo menos nos termos em que o coro laudatório do governo apregoa. A mudança está de facto em curso, mas já o estava antes de 2007. E não ignoremos o incentivo perverso da desvalorização nominal em termos de estímulo à inovação empresarial. Gente mais qualificada e com menores salários é o melhor convite ao “business as usual”.

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