sábado, 11 de janeiro de 2014

O ESPELHO ANTECIPADO



Tenho para mim que acompanhar o que têm sido os efeitos da deriva liberal e privatizante do Reino Unido, desde o legado da senhora Thatcher, mesmo tendo em conta o interregno trabalhista de Blair e Brown, é uma forma expedita de compreendermos por antecipação efeitos de algumas das transformações de teor similar que a atual maioria procura disseminar em Portugal.
Sobretudo no domínio de algumas privatizações, dos caminhos de ferro (com um modelo semelhante ao português ainda público de empresa responsável pela gestão da infraestrutura e de operadora), dos correios, das facilities e dos transportes urbanos encontramos antecipações, em alguns casos algo aterradoras, da falácia de que o privado conduz sempre a melhores resultados de gestão.
Nos últimos dias, passou-me pelos olhos um artigo de James Meek na London Review of Books centrado no drama e tragédia que definem hoje a habitação social no Reino Unido, com trajetória começada no célebre programa Right to Buy. O panorama que o artigo descreve é algo aterrador e merece que nele meditemos sobre os riscos da transição do público para o privado.
Ora, a situação é a seguinte. Existe neste momento uma crise intensa de escassez de habitação que é acompanhada pela significativa subida do preço da mesma. As origens do processo hoje vivido pela sociedade inglesa estão no programa lançado populísticamente por Thatcher de venda generalizada das habitações públicas aos arrendatários a valores sensivelmente abaixo do valor das referidas habitações. A generalidade dos adquirentes vendeu as habitações a entidades e a indivíduos privados, enquanto que os municípios eram proibidos pelo governo de renovar a construção do seu parque habitacional. A política social de habitação começou a ser então concretizada por via de benefícios (subsídios) ao arrendamento, esperando-se que o mercado se substituísse à oferta pública local aumentando a construção de novas habitações, o que esteve longe de acontecer.
Em contexto de forte escassez de habitação e acentuada subida de preços, a redução da despesa pública social por parte do governo conservador atingiu os subsídios ao arrendamento, estando neste contexto a provocar processos desumanos de deslocalização de idosos, obrigados a procurar a distâncias inimagináveis habitações compatíveis com os agora mais reduzidos subsídios de arrendamento. Não só o mercado gerou escassez de habitação, como a oferta de habitação social a preços moderados de iniciativa local ou de entidades não lucrativas de solidariedade social não consegue ultrapassar essa escassez, provocando uma situação socialmente dramática.
No artigo de James Meek, Pat Quinn, uma viúva na escala dos 60, depois de viver 40 anos numa habitação de duas assoalhadas em Tower Hamlets (um dos guetos de Londres) na qual morreu o seu marido, é obrigada pelas regras de diminuição dos subsídios de arrendamento a procurar uma habitação de uma assoalhada numa situação penosa de escassez de mercado e de habitação social.
Aqui temos um caso em que o mercado não funcionou, não gerando oferta privada compatível com o desinvestimento público em grande escala que o governo conservador iniciou e agora agrava com a diminuição drástica da despesa pública em matéria de política social de habitação.
Mais uma vez se cava em mim a ideia de que o Reino Unido é, em muitos aspetos, o espelho antecipado do desvario da privatização a todo o preço. Estar atento aos efeitos da cartilha pode ser uma excelente via para agudizar o seu escrutínio e por essa via rejeitar o experimentalismo social.

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