Ainda bem que o post de ontem precedeu o longo e profundo tratamento que o Público
de hoje dedica ao tema do conturbado estado da arte da ciência em Portugal,
sobretudo do seu financiamento público. Grande parte dos meus argumentos são
esgrimidos pela esmagadora maioria dos testemunhos ouvidos pelos jornalistas do
Público.
Bem pode o Presidente da Fundação para a Ciência
e Tecnologia (FCT) pregar e proclamar que a vontade do Governo é tornar a ciência
cada vez menos dependente do Orçamento de Estado. Tal posição não disfarça de
todo a incomodidade e descontentamento que grassa por toda a comunidade científica,
da Universidade aos centros de investigação não necessariamente com ela
conectados. O argumento da cada vez menor dependência da ciência face ao
orçamento de Estado é uma completa falácia, pois ignora que a ciência e o seu
desenvolvimento não são dissociáveis do desenvolvimento do país que a promove.
Excetuando a via do financiamento público
nacional, restam a do cofinanciamento comunitário por via dos Programas-Quadro
comunitários e a do financiamento empresarial, seja por empresas nacionais,
seja por empresas estrangeiras que reconheçam a valia do conhecimento científico
produzido competitivamente em Portugal. Em ambas as vias, o argumento do
Presidente da FCT carece de legitimidade.
O financiamento comunitário à ciência europeia
através dos sucessivos Programas-Quadro exige a forte participação do
investimento público em ciência de modo a contrariar a tendência para que sejam
os países mais desenvolvidos e melhor situados na fronteira científica a captar
mais recursos no financiamento competitivo. O acesso ao financiamento competitivo
exige criação de condições de sucesso e a melhoria das plataformas de acesso
deve constituir uma preocupação nacional. Esse é papel de uma política nacional
de investigação científica, da qual o Governo não pode desligar-se.
Quanto ao financiamento empresarial não pode
ignorar-se que o desenvolvimento da investigação científica precede claramente
o desenvolvimento da I&D empresarial ou financiada pelas empresas. Tal
desenvolvimento tendeu a gerar excelências científicas em Portugal que não têm
a mínima capacidade de se articular com a inovação empresarial. As empresas não
estão à altura dessa excelência científica. O ajustamento que tal historial
implica exige uma longa maturação que o mercado é incapaz de realizar, exigindo
por isso o contributo do financiamento público. Mesmo que esse ajustamento se
produza, haverá sempre excelência científica que ficará fora da capacidade de
absorção empresarial do conhecimento, até porque não é líquido que a inovação
empresarial dependa sempre do conhecimento analítico que a investigação científica
proporciona. Ora, neste contexto, quem assume a responsabilidade de dizer a
essa excelência científica que não tem lugar neste País?
A entrevista de Miguel Seabra não consegue
disfarçar o vazio em que o Governo colocou a ciência.
A carta aberta que António Costa Pinto, Diogo
Ramada Curto e Manuel Sobrinho Simões dirigem também no Público de hoje ao
ministro da Educação retoma contundentemente alguns destes argumentos. Mas contém
duas afirmações que exigirão uma análise mais cuidada.
A primeira respeita ao que os três cientistas
falam “das apetências clientelares pelos fundos estruturais que ai vêm”. A
expressão é ambígua e não podemos ignorar que os fundos estruturais não
financiam propriamente a investigação científica, mas sim fundamentalmente
atividades de I&D que apresentem potencial de translação para a inovação
empresarial. Ora, assim sendo, a que apetências clientelares os três cientistas
se referem? Que vá sabendo, tenho conhecimento que a FCT ensaiou um “take-over” dos fundos estruturais e do
tema da especialização inteligente como uma via de disfarçar a incapacidade de
cofinanciamento por parte da política pública. Será a este “take-over” a que os
cientistas se referem, ou estarão a pensar em alguns lobbies científicos, como por exemplo a Fundação Champalimaud?
A segunda cito-a para que a possamos compreender
em todo o seu significado: “É natural
que, num período de crise, os escassos recursos sejam canibalizados pelos interesses
mais poderosos e o próximo exercício dos fundos da União Europeia vai torna-lo
seguramente mais claro. Mas esperamos que seja respeitado o consenso em torno
da ideia de que o investimento em investigação científica é, de facto, o mais
rentável para que o desenvolvimento do País não seja apenas aparente”.
Tenho em muito boa conta os signatários da carta
e o Manuel Sobrinho Simões é seguramente um dos meus ídolos. Mas não estou
seguro que “o investimento em investigação científica seja de facto o mais rentável
para que o desenvolvimento do País não seja apenas aparente”. E os
investimentos em qualificação e em capital humano? A escolha não é abstrata,
depende do estádio de desenvolvimento do país. É ainda e sempre uma questão de
escolhas públicas. E o País deve assumi-las com frontalidade e sem hesitações. O
problema é que este Governo não é capaz de assumir tais escolhas e muito menos
de as transmitir claramente ao País para que ele possa pronunciar-se.
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