domingo, 19 de janeiro de 2014

AINDA O VAZIO NA CIÊNCIA



Ainda bem que o post de ontem precedeu o longo e profundo tratamento que o Público de hoje dedica ao tema do conturbado estado da arte da ciência em Portugal, sobretudo do seu financiamento público. Grande parte dos meus argumentos são esgrimidos pela esmagadora maioria dos testemunhos ouvidos pelos jornalistas do Público.
Bem pode o Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) pregar e proclamar que a vontade do Governo é tornar a ciência cada vez menos dependente do Orçamento de Estado. Tal posição não disfarça de todo a incomodidade e descontentamento que grassa por toda a comunidade científica, da Universidade aos centros de investigação não necessariamente com ela conectados. O argumento da cada vez menor dependência da ciência face ao orçamento de Estado é uma completa falácia, pois ignora que a ciência e o seu desenvolvimento não são dissociáveis do desenvolvimento do país que a promove.
Excetuando a via do financiamento público nacional, restam a do cofinanciamento comunitário por via dos Programas-Quadro comunitários e a do financiamento empresarial, seja por empresas nacionais, seja por empresas estrangeiras que reconheçam a valia do conhecimento científico produzido competitivamente em Portugal. Em ambas as vias, o argumento do Presidente da FCT carece de legitimidade.
O financiamento comunitário à ciência europeia através dos sucessivos Programas-Quadro exige a forte participação do investimento público em ciência de modo a contrariar a tendência para que sejam os países mais desenvolvidos e melhor situados na fronteira científica a captar mais recursos no financiamento competitivo. O acesso ao financiamento competitivo exige criação de condições de sucesso e a melhoria das plataformas de acesso deve constituir uma preocupação nacional. Esse é papel de uma política nacional de investigação científica, da qual o Governo não pode desligar-se.
Quanto ao financiamento empresarial não pode ignorar-se que o desenvolvimento da investigação científica precede claramente o desenvolvimento da I&D empresarial ou financiada pelas empresas. Tal desenvolvimento tendeu a gerar excelências científicas em Portugal que não têm a mínima capacidade de se articular com a inovação empresarial. As empresas não estão à altura dessa excelência científica. O ajustamento que tal historial implica exige uma longa maturação que o mercado é incapaz de realizar, exigindo por isso o contributo do financiamento público. Mesmo que esse ajustamento se produza, haverá sempre excelência científica que ficará fora da capacidade de absorção empresarial do conhecimento, até porque não é líquido que a inovação empresarial dependa sempre do conhecimento analítico que a investigação científica proporciona. Ora, neste contexto, quem assume a responsabilidade de dizer a essa excelência científica que não tem lugar neste País?
A entrevista de Miguel Seabra não consegue disfarçar o vazio em que o Governo colocou a ciência.
A carta aberta que António Costa Pinto, Diogo Ramada Curto e Manuel Sobrinho Simões dirigem também no Público de hoje ao ministro da Educação retoma contundentemente alguns destes argumentos. Mas contém duas afirmações que exigirão uma análise mais cuidada.
A primeira respeita ao que os três cientistas falam “das apetências clientelares pelos fundos estruturais que ai vêm”. A expressão é ambígua e não podemos ignorar que os fundos estruturais não financiam propriamente a investigação científica, mas sim fundamentalmente atividades de I&D que apresentem potencial de translação para a inovação empresarial. Ora, assim sendo, a que apetências clientelares os três cientistas se referem? Que vá sabendo, tenho conhecimento que a FCT ensaiou um “take-over” dos fundos estruturais e do tema da especialização inteligente como uma via de disfarçar a incapacidade de cofinanciamento por parte da política pública. Será a este “take-over” a que os cientistas se referem, ou estarão a pensar em alguns lobbies científicos, como por exemplo a Fundação Champalimaud?
A segunda cito-a para que a possamos compreender em todo o seu significado: “É natural que, num período de crise, os escassos recursos sejam canibalizados pelos interesses mais poderosos e o próximo exercício dos fundos da União Europeia vai torna-lo seguramente mais claro. Mas esperamos que seja respeitado o consenso em torno da ideia de que o investimento em investigação científica é, de facto, o mais rentável para que o desenvolvimento do País não seja apenas aparente”.
Tenho em muito boa conta os signatários da carta e o Manuel Sobrinho Simões é seguramente um dos meus ídolos. Mas não estou seguro que “o investimento em investigação científica seja de facto o mais rentável para que o desenvolvimento do País não seja apenas aparente”. E os investimentos em qualificação e em capital humano? A escolha não é abstrata, depende do estádio de desenvolvimento do país. É ainda e sempre uma questão de escolhas públicas. E o País deve assumi-las com frontalidade e sem hesitações. O problema é que este Governo não é capaz de assumir tais escolhas e muito menos de as transmitir claramente ao País para que ele possa pronunciar-se.

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