O debate em torno da ciência em Portugal está
vivo e a comunidade científica parece ter despertado finalmente de uma letargia
típica de tempos com ventos favoráveis, de valorização do estatuto da ciência e
com grande dificuldade de pronunciamento sobre os problemas do país. Essa
letargia prolongou-se por algum tempo para além do início dos apertos
orçamentais, talvez devido à comparação favorável com a vizinha Espanha, onde
as diabruras do Governo de Rajoy cavaram mais fundo nos orçamentos da investigação
científica, e nas regiões Norte e Centro a um contributo inestimável dos
Programas Operacionais Norte e Centro (conheço melhor os apoios do primeiro) que
proporcionaram a algumas equipas científicas e respetivas infraestruturas
laboratoriais e físicas apoios não despiciendos em contexto de rarefação de
fundos públicos.
A letargia da comunidade científica prolongou-se
também na incapacidade real de compreender ao que o ministro Crato e seus
colaboradores vinham nesta matéria. Afinal trata-se de pares entre pares, questão
extensiva não apenas à Secretária de Estado da Ciência Leonor Parreira e ao
Presidente da FCT Miguel Seabra, ambos curiosamente (e se calhar não)
investigadores relevantes na área das ciências da vida. Terá passado o
pensamento de que pares não penalizam pares, embora aqui se trate de pares,
sobretudo a Secretária de Estado e o Presidente da FCT, concentrados nas ciências
da vida, que publicam incessantemente e têm um reconhecimento internacional
indiscutível. Mas é estranho que a comunidade científica não tenha compreendido
que o ministro Crato, não navegando nas mesmas águas da densidade de publicações
e citações internacionais das ciências da vida, rapidamente deu mostras de que
vinha para combater paradigmas anteriores sem construir nada de novo e de
coerente, deixando atrás de si um rasto de vazio estratégico muito preocupante.
Mas a comunidade científica pareceu admitir que ficaria a salvo de qualquer arremetida
dessa natureza. Pois enganou-se e redondamente. Pois Crato para além de deixar
rasto de vazio estratégico, revelou-se frágil quanto baste e não foi capaz de junto
do Ministério das Finanças e primeiro-Ministro defender a dama e fazer valer o
que pode valer o reconhecimento internacional do nosso potencial científico.
E por isso, muito por força da revolta de jovens
cientistas a quem foi prometido uma outra trajetória de progressão e da
reatividade de áreas científicas mais frágeis e sem a defesa das ciências da
vida, acabou a referida letargia. E insurgiu-se contra o vazio estratégico.
Como é óbvio, o poder de autoridade de quem fala
e se insurge não é homogéneo.
A cientista e Professora Emérita da Universidade
do Porto Maria de Sousa quando fala é para escutar. Maria de Sousa trouxe para
Portugal e sobretudo para o Porto e Instituto Abel Salazar (Ciências Biomédicas)
um novo fôlego vindo do exterior com um rasto de reconhecimento a nível
internacional atrás de si. Trouxe sobretudo o poder de mobilização e atração de
jovens para uma carreira científica, retirando algumas teias de aranha de
cabeças eméritas mas que nunca viveram o ambiente das grandes massas científicas
de grandes universidades por esse mundo. Recordo-me que, nos tempos saudosos de
tertúlia da Resultante, associação cívica, com amigos como o Professor Nuno
Grande (já desaparecido), o Arquiteto Lixa Filgueiras (também), o Engº Rui
Oliveira e gente então mais nova como eu próprio, o Arquiteto Nuno Guedes de
Oliveira (também já desaparecido), algum tempo do Professor Abílio Cardoso
(também desaparecido) e o Engº Manuel Miranda, se discutiu vivamente o teor de
mudança que Maria de Sousa simbolizava e o que a sua vinda para Portugal poderia
representar do ponto de vista da mudança de paradigma da investigação em
Portugal. Ainda há dias, o muito prestigiado investigador Rui Costa da Fundação
Champalimaud fazia referência ao que significou a sua passagem da Guarda pelo
Porto (Ciências Biomédicas) e o nome de Maria de Sousa foi inevitavelmente
referido como o grande atractor desse tempo.
O pretexto da crónica é a reação desrespeitosa e
deselegante de Miguel Seabra a uma carta aberta liderada por Manuel Sobrinho
Simões (MSS) também no Público, despachando-o com a ideia de que MSS é um entre
50.000.
Ora, sem papas na língua, Maria de Sousa hoje no
Público convida polidamente o Presidente da FCT a continuar a publicar na
Lancet ou em outras revistas de ponta, mas a abandonar a sua insuficiente
representação dos investigadores portugueses. Maria de Sousa sublinha com
finura que “o número de grandes investigadores que conseguiram conciliar as
suas qualidades de investigador com a qualidade de grandes administradores da
política científica é, na minha experiência em vários países, muito pequeno”. Crítica
impiedosa de luva branca, atestado de não representatividade dos interesses dos
investigadores ao Presidente da FCT, com Miguel Seabra claramente touché.
A discussão vai no adro e as sucessivas
desconfianças que estão a surgir sobre os resultados dos júris de apreciação de
bolsas de investigação, alteradas posteriormente pela própria FCT, não vão ficar
por aqui em matéria de réplicas. A comunidade científica não passa ao lado das questões
de poder, falta de ética e perversidade também passam pela ciência e seria
democrático que todos os painéis fossem divulgados, escrutinados e sujeitos a
alguma renovação. A ciência não é uma virgem púdica e santificada.
Mas esta crónica de Maria de Sousa coloca Miguel
Seabra numa posição muito frágil. E não será de excluir a falta de cobertura
política da Secretária de Estado. O que seria curioso pois tudo seria operado
no interior das ciências da vida. Quem diria!
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