sábado, 1 de março de 2014

HABERMAS E O “PATRIOTISMO CONSTITUCIONAL”


Jürgen Habermas não cessa de nos estimular intelectualmente. Desta vez com um artigo, que em boa hora o “Le Monde” traduziu, intitulado “Repolitizemos o debate europeu”. Começa colocando assim a questão: “A nossa época carateriza-se por uma desproporção crescente entre uma sociedade mundial em vias de homogeneização sistémica e o mundo dos Estados, que permanece inalterado na sua fragmentação”. Eis uma reflexão que merece espaço, eis um debate que releva e urge.

O filósofo alemão refere seguidamente o paradoxo, que não deixa de qualificar como compreensível do ponto de vista psicológico, decorrente do modo como a perda de capacidade da ação política proveniente da integração sistémica conduz as políticas e os cidadãos a agarrarem-se com veemência ao Estado-Nação e às suas cada vez mais porosas fronteiras. E, sustentando que a necessária margem de manobra só pode ser recuperada à escala supranacional, explica que a via seguida pela construção europeia – “o modelo de sociedade europeia assenta na relação interna do Estado social com a democracia” – é a única que pode conduzir a uma transnacionalização da democracia contra os constrangimentos de uma sociedade mundial crescentemente funcionando como um sistema em rede. A ideia de um “patriotismo constitucional” – uma designação que não será talvez das mais felizes... – provém precisamente deste apego à democracia para além do facto nacional.

O raciocínio de Habermas prossegue desafiante em cada linha de escrita e não será este um espaço apropriado para ir demasiado longe no desfiar desse novelo. Que contempla, entre muitos outros tópicos centrais, as questões de uma unificação política europeia defensivamente conduzida, da falta de evidência intuitiva do projeto europeu para os cidadãos ou da escassez de elites políticas capacitadas para dar as pertinentes respostas. Matérias que constituem todo um mundo de desafios complexos que irão determinar as grandes linhas do nosso porvir.

Termino com uma referência sobretudo justificada por razões de atualidade. Porque Habermas também se dirige aos seus compatriotas, sublinhando designadamente: “O governo federal, devido ao seu peso económico e ao seu poder de negociação informal, impôs ao Conselho Europeu as ideias alemãs visando a ultrapassagem das crises. Obrigou os países em crise a ‘reformas’ radicais, sem endossar a responsabilidade, ao nível europeu global, das consequências mais que severas dessa política de austeridade a que falta qualquer equilíbrio em matéria social.” E mais ainda: “É do nosso interesse nacional não voltarmos a essa ‘posição semi-hegemónica’ da Alemanha que abriu o caminho a duas guerras mundiais e que o processo de unificação europeia tinha finalmente permitido superar”.

E num plano de especial utilidade para aquela dupla de comentadores da “Prova dos Nove” que vai liderar as listas europeias da coligação PSD/CDS e do PS e se afirma decidida a por cá vir promover um debate com conteúdo em torno da problemática europeia, o certo é que Habermas também se pronuncia utilmente nessa direção. Primeiro quando defende a seguinte perspetiva básica: “Só o governo federal está em condições de tomar a iniciativa. Só ele está em posição de propor à França e aos países do sul da Europa, onde uma renúncia à soberania e uma integração aprofundada também não suscitam entusiasmo, uma solução tanto política como económica”. Depois, e mais aplicadamente, quando acrescenta: “Naturalmente, um processo muito longo e difícil não poderia iniciar-se por este único sinal. Além disso, o sinal em questão só seria digno de fé se se estivesse disposto a quatro coisas: aceitar uma Europa a duas velocidades; renunciar ao intergovernamentalismo; aspirar a um sistema europeu de partidos; e abandonar o atual modus operandi da política europeia, que é o puro produto de uma elite.”

Quem diria que os contributos do velho Habermas assim poderiam vir ajustar-se tão exemplarmente aos ardentes desejos de propositura e intervenção manifestados por Francisco Assis?

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