quinta-feira, 19 de março de 2015

AINDA A IRLANDA

(Elaboração própria a partir de World Development Indicators, World Bank)


À boleia do penúltimo post do meu colega de blogue, centrado na dinâmica irlandesa do pós-resgate, decidi sistematizar alguns elementos de pesquisa e reflexão que me parecem úteis para mostrar como a comparação entre a Irlanda e Portugal põe em evidência a imbecilidade estrutural de concretizar processos de ajustamento como se as economias sob resgate fossem homogéneas, a que o consulado de Durão Barroso ficará para sempre ligado, apesar do branqueamento que o próprio e seus apaniguados irão nos próximos tempos realizar, pelos vistos a peso de ouro.
Como muito boa gente se recorda, a experiência irlandesa, designada ou não por tigre celta ou por outra qualquer sigla, sempre foi apontada pelos gurus da nossa praça como um exemplo a seguir pelos portugueses. Os ritmos de crescimento irlandês sempre impressionaram os nativos com maior literacia económica, claro está sempre sem a preocupação de atender ao seu contexto de matriz de influência anglo-saxónica que não é facilmente replicável. Noutros períodos, os nativos expressaram os seus amores pela experiência irlandesa tomando-a como um paradigma da aplicação não infraestrutural (e com aposta no Fundo Social Europeu e na formação profissional). Eu próprio, em 1997, quando em viagem profissional com a Professora Teresa Lago (UP) e o Dr. Rui Feijó (então vereador da CM do Porto), aterrei em Dublin para uma viagem de carro até à Irlanda do Norte e estudar in loco um planetário de referência para o futuro Planetário da UP no Porto, fiquei surpreendido pela frugalidade de infraestruturas viárias das duas irlandas. Mas, já nessa altura, as minhas convicções conceptuais de que não há trajetórias deterministas para o desenvolvimento estavam perfeitamente enraizadas e um dos patronos deste blogue, Albert O. Hirschman, me tinha ensinado que a história bem-sucedida do desenvolvimento está cheia de estratégias aparentemente heterodoxas e não canónicas. Por isso, entendi nessa altura que os irlandeses tinham desenhado a sua própria trajetória e lá sabiam porquê e que replicar opções dessa natureza é coisa difícil e nem sempre recomendável.
A brutal crise financeira em que a Irlanda se viu mergulhada foi uma consequência lógica e natural da sua forte articulação com a economia americana e com o seu sistema financeiro. O entusiasmo dos nativos esmoreceu um pouco, afinal o tigre celta parecia menos robusto e assemelhava-se mais a um lince em extinção. Mas nem oito nem oitenta. Tudo isto é fruto da não contextualização de uma experiência de desenvolvimento económico.
Aproveitando o potencial enorme que a base de dados on line do World Development Indicators do Banco Mundial nos proporciona, gastei algum tempo a coligir alguma informação relevante para mostrar que uma análise comparativa expedita entre a Irlanda e Portugal revela o diferente contexto estrutural em que os programas de ajustamento irlandês e português decorreram, com efeitos prolongados na necessariamente diversa recuperação pós resgate que as duas economias teriam de revelar, aliás como está a acontecer. Cai assim por terra a desfaçatez da tecnocracia europeia em imaginar que o mesmo tipo de medidas orientadas para a desvalorização interna e empobrecimento das duas economias (talvez até mais evidente na economia irlandesa) produziria os mesmos efeitos em matéria de projeção positiva das exportações. O mainstream económico que suporta esta despudorada tecnocracia ignora totalmente a matéria do tempo e a espessura temporal das transformações desejadas.
O gráfico que abre em termos de imagem este post é suficientemente esclarecedor e fala por si. Estamos perante duas economias com um fortemente desigual coeficiente de extroversão. A Irlanda em doze anos (2000-2012) raras vezes desceu abaixo dos 80% de peso das exportações de bens e serviços no PIB, contrastando com o esforço português para atingir os 40%. A Irlanda em 2012 exportava mais em valor do que o seu próprio PIB, ultrapassando o limiar dos 100%. Ou seja, a Irlanda era, no pré-crise, uma economia já perfeitamente inserida na economia global, sem grandes necessidades de transformação do seu perfil de especialização e com grandes empresas representativas das modernas cadeias de valor à escala mundial implantadas no seu território. Portugal era no pré-crise uma economia com um modelo de crescimento exaurido e resultados anémicos, a necessitar de uma profunda transformação do seu perfil de especialização. Como é que é possível conceber programas de ajustamento sem reconhecer essa diversidade? Como diria Bradford DeLong, Oh, Oh why can’t we have better economists?


 (Elaboração própria a partir de World Development Indicators, World Bank)
O gráfico acima completa o quadro. Compara-se por essa via o grau de abertura das duas economias ao investimento direto estrangeiro, calculando o peso dos afluxos líquidos de IDE em percentagem do PIB. Por aqui se percebe que os dois gráficos estão indissoluvelmente ligados. A integração da Irlanda na economia global faz-se entre outros aspetos através do IDE fortemente implantado no país. Para além disso, essa integração não exige uma forte infraestrutura viária, mas apenas uma boa infraestrutura aeroportuária, pois as exportações de que falamos (Cisco, Microsoft e outras) ou se concretizam no espaço etéreo digital ou por transporte aéreo. Para que precisariam os irlandeses de uma rede potente de autoestradas? Em vez destas, tiveram a permissão europeia de uma fiscalidade agressiva. Como Hirschman tinha razão!
Dirão alguns nativos, ainda recordados da metáfora dos Fundos Estruturais, que pesa sobre tudo isto a questão das qualificações. É verdade mas teremos de trabalhar uma outra metáfora, a dos stocks e fluxos.


 (Elaboração própria World Development Indicators)
O gráfico imediatamente acima mostra a inércia estrutural portuguesa. A percentagem de indivíduos entre os 15 e os 64 anos que têm formação superior é esmagadoramente mais baixa em Portugal. O peso dos stocks e da inércia.
Mas o gráfico abaixo, de outra fonte, agora do Banco Mundial ao passo que o anterior é Eurostat, mostra que em termos de fluxos mais recentes a taxa de escolarização superior bruta dos dois países é já muito similar.


Finalmente, comparando as taxas de emprego da população com baixas qualificações (ISCED 0-2) nas duas economias, observa-se sem surpresa a maior taxa de emprego da economia portuguesa, embora em queda.


Por tudo isto, só um desabafo: “Oh, Oh why can’t we have better adjustment programmes?”

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