A crónica de hoje de Vasco Pulido Valente, no Público,
reproduz fielmente as sensações que geralmente tendemos a experimentar quando
lemos a sua prosa impiedosa. Sensações de incomodidade pela crueza quase
irreversível do pessimismo, nem sequer crítico do autor, de renúncia à ação
possível, mas simultaneamente uma vontade de pensar sobre a matéria e sobre
esse pessimismo estrutural. Nessa perspetiva, se invocarmos as ideias de José
Gil (ver post do meu colega de blogue) de que hoje mais do que nunca é crucial
pensar, pensar, não deixar nunca de pensar, então as crónicas de VPV estarão no
registo certo. Pensar sobre a incomodidade é sempre mais apelativo do que o
fazer sobre a facilidade.
E o tema da crónica de hoje de VPV é central para os
tempos que se abatem sobre o país e sobre a Europa no próximo futuro. Vou
passar por cima da natureza arrasadora da crónica para António Costa. A
simpatia de VPV por AC foi fugaz e esgotou-se rapidamente. Recordo-me de VPV
antes da recente interrupção da sua crónica escrever que votar António Costa
poderia equivaler a uma simples necessidade de respirar, tamanha era a poluição
e desconchavo da presente governação. Uma personalidade como a de VPV afirma-se
sempre contra alguém e dificilmente esse momento de empatia poderia vingar.
Mas a crónica de hoje é muito importante, sobretudo
porque toca no tema chave da pretensa vacuidade do pensamento socialista. VPV
mistura nessa perceção a realidade portuguesa com a europeia dos partidos
agrupados no Parlamento Europeu em torno de uma matriz de facto bastante difusa
dos socialistas europeus.
Temos de convir que o esvaziamento do socialismo e
social-democracia europeia é por demais trágico para ser ignorado ou
escamoteado. Sabemos que as raízes históricas do então chamado socialismo
democrático e da social-democracia propriamente dita não são comuns. Mas, nos
tempos mais recentes, sobretudo a partir da Terceira Via e das experimentações
de Blair e dos Trabalhistas no Reino Unido, a convergência de evolução foi notória,
a ponto de em certos contextos político-partidários se ter esfumado o peso das
diferentes origens históricas. A entrada dos socialistas europeus nos meandros
da política económica em ambiente institucional de economia de mercado e a
tentação em que muitos tombaram de procurar interpenetrações virtuosas entre o
público e o privado foi fatal do ponto de vista do esbatimento das escolhas públicas
que deveriam marcar a diferença do socialismo democrático face aos partidos da
direita liberal ou da direita mais personalista. Tenho para mim que dar graças às
virtudes da economia de mercado e querer construir nesse quadro políticas de
intervencionismo económico é fatal para os partidos que se reivindicam do
socialismo democrático. Essa opção mergulha-os em afetações de recursos públicos
que, em contextos de crescimento económico moderado, senão anémico, que são uma
realidade totalmente diferente da que permitiu a experimentação da
social-democracia europeia, que acabam por tornar-se conflituais com outras
escolhas públicas, de âmbito mais marcadamente social e nas quais é imperioso
fazer diferente. Essa contradição é hoje notória em algumas personalidades que
se reivindicam da herança socialista. Ou alinham por posições praticamente
identificadas com a defesa do intervencionismo público do tipo da que PCP tende
a assumir, ou acabam por equivaler a defender padrões e intensidades de despesa
pública cuja capacidade de financiamento é difícil de assegurar sem beliscar os
imperativos sociais atrás mencionados.
António Costa e qualquer outro projeto que se reivindique
de fazer diferente na gestão do futuro da sociedade portuguesa enfrentam um
constrangimento que tenho visto pouco analisado e que radica na enormíssima
fadiga fiscal que atinge uma parte considerável da sociedade portuguesa. E não
estou a falar de fadiga fiscal para grupos sociais que podem facilmente usar os
mecanismos da globalização financeira ou que dominam os meandros do complexo
sistema financeiro, fonte de todas as instabilidades. Estou a falar de fadiga
fiscal notória para grupos de quadros superiores e outras faixas da classe média
alta que não tem habitualmente a prática de usar a globalização financeira para
aliviar tal fadiga.
Uma carga fiscal em estádio de fadiga combate-se à
direita, cavalgando a descompressão de despesa pública que o aliviamento da
carga fiscal seguramente implica, cavalgando simultaneamente a pouco
demonstrada ideia de que essa redução implicará por si só crescimento económico.
A pergunta relevante é como se combate essa fadiga fiscal à esquerda? Uma saída
possível consiste em pactar com os grupos sociais mais atingidos por essa
fadiga condições de transparência na utilização dessa carga fiscal e sobretudo
definir objetivos muito precisos para a política de despesa pública. Não é
seguro que haja massa crítica suficiente de gente que esteja disponível para
esse pacto Outra saída é conseguir reduções seletivas de carga fiscal, sobretudo
com uma melhor redistribuição da mesma, mas não pode ignorar-se que a carga
fiscal em Portugal já é entre os que estão no sistema fortemente progressiva. A
comparação do nível de desigualdade na distribuição do rendimento em Portugal
antes e depois dos impostos é já significativa.
O problema neste momento é que não há em Portugal um
partido social-democrata que possa dialogar construtivamente com o Partido
Socialista estas questões. Os Maçães deste país que Passos Coelho acolitou não
estão interessados na social-democracia. A social-democracia profunda do PSD ou
está em agonia ou interessou-se por outras coisas da vida e não tem já força de
alternativa no interior do partido.
Onde podem estar a meu ver domínios de abertura possível
do PS para convergências pontuais em certos domínios de futuro creio que estão
na área económica, fazendo-o numa antecipação rigorosa do que é que pode ser
fator de crescimento económico. Estou cada vez mais convencido que a melhor
forma de marcar pontos na valorização de um outro modelo económico não passa
necessariamente pela intensificação de investimento e da despesa pública. Passa
antes pela consistência de opções de futuro que devem atravessar toda a produção
legislativa governamental.
É matéria para outro fôlego.
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