domingo, 15 de março de 2015

SOCIALISMOS



A crónica de hoje de Vasco Pulido Valente, no Público, reproduz fielmente as sensações que geralmente tendemos a experimentar quando lemos a sua prosa impiedosa. Sensações de incomodidade pela crueza quase irreversível do pessimismo, nem sequer crítico do autor, de renúncia à ação possível, mas simultaneamente uma vontade de pensar sobre a matéria e sobre esse pessimismo estrutural. Nessa perspetiva, se invocarmos as ideias de José Gil (ver post do meu colega de blogue) de que hoje mais do que nunca é crucial pensar, pensar, não deixar nunca de pensar, então as crónicas de VPV estarão no registo certo. Pensar sobre a incomodidade é sempre mais apelativo do que o fazer sobre a facilidade.
E o tema da crónica de hoje de VPV é central para os tempos que se abatem sobre o país e sobre a Europa no próximo futuro. Vou passar por cima da natureza arrasadora da crónica para António Costa. A simpatia de VPV por AC foi fugaz e esgotou-se rapidamente. Recordo-me de VPV antes da recente interrupção da sua crónica escrever que votar António Costa poderia equivaler a uma simples necessidade de respirar, tamanha era a poluição e desconchavo da presente governação. Uma personalidade como a de VPV afirma-se sempre contra alguém e dificilmente esse momento de empatia poderia vingar.
Mas a crónica de hoje é muito importante, sobretudo porque toca no tema chave da pretensa vacuidade do pensamento socialista. VPV mistura nessa perceção a realidade portuguesa com a europeia dos partidos agrupados no Parlamento Europeu em torno de uma matriz de facto bastante difusa dos socialistas europeus.


Temos de convir que o esvaziamento do socialismo e social-democracia europeia é por demais trágico para ser ignorado ou escamoteado. Sabemos que as raízes históricas do então chamado socialismo democrático e da social-democracia propriamente dita não são comuns. Mas, nos tempos mais recentes, sobretudo a partir da Terceira Via e das experimentações de Blair e dos Trabalhistas no Reino Unido, a convergência de evolução foi notória, a ponto de em certos contextos político-partidários se ter esfumado o peso das diferentes origens históricas. A entrada dos socialistas europeus nos meandros da política económica em ambiente institucional de economia de mercado e a tentação em que muitos tombaram de procurar interpenetrações virtuosas entre o público e o privado foi fatal do ponto de vista do esbatimento das escolhas públicas que deveriam marcar a diferença do socialismo democrático face aos partidos da direita liberal ou da direita mais personalista. Tenho para mim que dar graças às virtudes da economia de mercado e querer construir nesse quadro políticas de intervencionismo económico é fatal para os partidos que se reivindicam do socialismo democrático. Essa opção mergulha-os em afetações de recursos públicos que, em contextos de crescimento económico moderado, senão anémico, que são uma realidade totalmente diferente da que permitiu a experimentação da social-democracia europeia, que acabam por tornar-se conflituais com outras escolhas públicas, de âmbito mais marcadamente social e nas quais é imperioso fazer diferente. Essa contradição é hoje notória em algumas personalidades que se reivindicam da herança socialista. Ou alinham por posições praticamente identificadas com a defesa do intervencionismo público do tipo da que PCP tende a assumir, ou acabam por equivaler a defender padrões e intensidades de despesa pública cuja capacidade de financiamento é difícil de assegurar sem beliscar os imperativos sociais atrás mencionados.
António Costa e qualquer outro projeto que se reivindique de fazer diferente na gestão do futuro da sociedade portuguesa enfrentam um constrangimento que tenho visto pouco analisado e que radica na enormíssima fadiga fiscal que atinge uma parte considerável da sociedade portuguesa. E não estou a falar de fadiga fiscal para grupos sociais que podem facilmente usar os mecanismos da globalização financeira ou que dominam os meandros do complexo sistema financeiro, fonte de todas as instabilidades. Estou a falar de fadiga fiscal notória para grupos de quadros superiores e outras faixas da classe média alta que não tem habitualmente a prática de usar a globalização financeira para aliviar tal fadiga.
Uma carga fiscal em estádio de fadiga combate-se à direita, cavalgando a descompressão de despesa pública que o aliviamento da carga fiscal seguramente implica, cavalgando simultaneamente a pouco demonstrada ideia de que essa redução implicará por si só crescimento económico. A pergunta relevante é como se combate essa fadiga fiscal à esquerda? Uma saída possível consiste em pactar com os grupos sociais mais atingidos por essa fadiga condições de transparência na utilização dessa carga fiscal e sobretudo definir objetivos muito precisos para a política de despesa pública. Não é seguro que haja massa crítica suficiente de gente que esteja disponível para esse pacto Outra saída é conseguir reduções seletivas de carga fiscal, sobretudo com uma melhor redistribuição da mesma, mas não pode ignorar-se que a carga fiscal em Portugal já é entre os que estão no sistema fortemente progressiva. A comparação do nível de desigualdade na distribuição do rendimento em Portugal antes e depois dos impostos é já significativa.
O problema neste momento é que não há em Portugal um partido social-democrata que possa dialogar construtivamente com o Partido Socialista estas questões. Os Maçães deste país que Passos Coelho acolitou não estão interessados na social-democracia. A social-democracia profunda do PSD ou está em agonia ou interessou-se por outras coisas da vida e não tem já força de alternativa no interior do partido.
Onde podem estar a meu ver domínios de abertura possível do PS para convergências pontuais em certos domínios de futuro creio que estão na área económica, fazendo-o numa antecipação rigorosa do que é que pode ser fator de crescimento económico. Estou cada vez mais convencido que a melhor forma de marcar pontos na valorização de um outro modelo económico não passa necessariamente pela intensificação de investimento e da despesa pública. Passa antes pela consistência de opções de futuro que devem atravessar toda a produção legislativa governamental.
É matéria para outro fôlego.

Sem comentários:

Enviar um comentário