Num dos raros momentos que tive recentemente de
reencontro com a atmosfera mágica da praça ou pracinha central de Caminha, na
minha leitura pausada do El País e de outros jornais, não pude deixar de me
concentrar no artigo de Jordi Soler, “Más dóciles y más cobardes”. O tema é conhecido e relaciona-se com o que alguma
esquerda radical atribui de alienação às novas tecnologias de informação e
comunicação, mais destas últimas do que das primeiras, sobretudo do ponto de
vista das alterações de relacionamento humano que tais tecnologias estarão a
determinar (potenciar?).
A novidade do artigo é ter-me levado a conhecer um filósofo radical italiano, Giorgio Agamben, que trabalha diria eu sob a inspiração de
Foucault sobre os chamados dispositivos. Os dispositivos seriam segundo Agamben
tudo que tem a capacidade de “capturar, orientar, determinar, intercetar,
modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os
discursos dos seres vivos”, conceção que na linha direta de Foucault nos leva não
só aos diferentes tipos de instituições sobre as quais Foucault foca o seu espírito
crítico, mas também a caneta, a escrita, a literatura, a filosofia, a
agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones móveis, os
telefones inteligentes, os tablet e o
que vier por aí.
Soler centra-se nos chamados dispositivos invasivos de
hoje, sobretudo os telefones inteligentes e os tablet, considerando-os responsáveis pela mudança radical da
velocidade a que a informação e a comunicação cruzam as nossas vidas,
destruindo a velocidade de circulação à escala humana. Não tenho nada a opor a
esta tese da perigosa mudança de paradigma na velocidade a que nos relacionamos
com a informação e a comunicação, desde a fobia de se estar permanentemente
conectado, até ao contacto instantâneo com o que mais importante ou fútil
acontece num sítio mais recôndito do mundo, que esteja conectado claro está.
A situação não é tão líquida quando se passa para a tese
de que esta família de dispositivos torna a sociedade um bando de gente dócil e
cobarde e fundamentalmente atomizada.
A tese de Soler é a de que os dispositivos ou gadgets de
que falamos atomizaram a sociedade, transformando a realidade dos consumos
coletivos num consumo solitário e profundamente atomizado. Tenho sérias dúvidas
em partilhar esta tese de que os dispositivos ou artefactos determinam o
comportamento humano, atomizando-o e tornando-o mais dócil e cobarde. Pode
questionar-se se, pelo contrário, nunca se comunicou tanto como hoje,
seguramente à escala planetária, claro está com a erosão dos consumos coletivos
de proximidade, seja em redor da lareira, em torno de uma única televisão ou
simplesmente em torno de um banco de jardim, taberna ou esplanada. Questiono-me
se é o dispositivo que leva o mais circunspecto cidadão a partilhar nas redes
sociais um momento íntimo, a expor a sua sexualidade, a sua gastronomia
preferida ou os mais recônditos segredos do seu refúgio logístico ou
espiritual. Questiono-me se o papel influenciador dos tais dispositivos é
dissociável das outras instituições que Foucault considerava condicionadores do
comportamento como a escola, a família, o estado ou simplesmente o manicómio e
se estas, elas e não a tecnologia, não são os mais importantes difusores da
cobardia, da docilidade ou do mais profundo isolamento. Sabemos como por
exemplo os tais dispositivos ou gadgets potenciam momentos raros de rebeldia,
de insubordinação e afirmação cívica desde as abortadas primaveras árabes até à
reviravolta eleitoral que levou Zapatero (PSOE) ao poder em Espanha depois do
afundamento do PP em matéria de denúncia nas redes sociais.
Sou muito crítico do determinismo tecnológico e não
atribuo qualquer importância ao facto de os jovens de hoje consumirem música à
peça e não através de um disco completo. Associar a isso a ideia de atomização
parece mais o reflexo de quem não convive bem com a evolução tecnológica do seu
tempo. Mas quem é que o impede de continuar a consumir como a presumida boa
tradição recomenda?
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