domingo, 29 de março de 2015

DISPOSITIVOS E ALIENAÇÃO



Num dos raros momentos que tive recentemente de reencontro com a atmosfera mágica da praça ou pracinha central de Caminha, na minha leitura pausada do El País e de outros jornais, não pude deixar de me concentrar no artigo de Jordi Soler, “Más dóciles y más cobardes”. O tema é conhecido e relaciona-se com o que alguma esquerda radical atribui de alienação às novas tecnologias de informação e comunicação, mais destas últimas do que das primeiras, sobretudo do ponto de vista das alterações de relacionamento humano que tais tecnologias estarão a determinar (potenciar?).
A novidade do artigo é ter-me levado a conhecer um filósofo radical italiano, Giorgio Agamben, que trabalha diria eu sob a inspiração de Foucault sobre os chamados dispositivos. Os dispositivos seriam segundo Agamben tudo que tem a capacidade de “capturar, orientar, determinar, intercetar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos”, conceção que na linha direta de Foucault nos leva não só aos diferentes tipos de instituições sobre as quais Foucault foca o seu espírito crítico, mas também a caneta, a escrita, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones móveis, os telefones inteligentes, os tablet e o que vier por aí.
Soler centra-se nos chamados dispositivos invasivos de hoje, sobretudo os telefones inteligentes e os tablet, considerando-os responsáveis pela mudança radical da velocidade a que a informação e a comunicação cruzam as nossas vidas, destruindo a velocidade de circulação à escala humana. Não tenho nada a opor a esta tese da perigosa mudança de paradigma na velocidade a que nos relacionamos com a informação e a comunicação, desde a fobia de se estar permanentemente conectado, até ao contacto instantâneo com o que mais importante ou fútil acontece num sítio mais recôndito do mundo, que esteja conectado claro está.
A situação não é tão líquida quando se passa para a tese de que esta família de dispositivos torna a sociedade um bando de gente dócil e cobarde e fundamentalmente atomizada.
A tese de Soler é a de que os dispositivos ou gadgets de que falamos atomizaram a sociedade, transformando a realidade dos consumos coletivos num consumo solitário e profundamente atomizado. Tenho sérias dúvidas em partilhar esta tese de que os dispositivos ou artefactos determinam o comportamento humano, atomizando-o e tornando-o mais dócil e cobarde. Pode questionar-se se, pelo contrário, nunca se comunicou tanto como hoje, seguramente à escala planetária, claro está com a erosão dos consumos coletivos de proximidade, seja em redor da lareira, em torno de uma única televisão ou simplesmente em torno de um banco de jardim, taberna ou esplanada. Questiono-me se é o dispositivo que leva o mais circunspecto cidadão a partilhar nas redes sociais um momento íntimo, a expor a sua sexualidade, a sua gastronomia preferida ou os mais recônditos segredos do seu refúgio logístico ou espiritual. Questiono-me se o papel influenciador dos tais dispositivos é dissociável das outras instituições que Foucault considerava condicionadores do comportamento como a escola, a família, o estado ou simplesmente o manicómio e se estas, elas e não a tecnologia, não são os mais importantes difusores da cobardia, da docilidade ou do mais profundo isolamento. Sabemos como por exemplo os tais dispositivos ou gadgets potenciam momentos raros de rebeldia, de insubordinação e afirmação cívica desde as abortadas primaveras árabes até à reviravolta eleitoral que levou Zapatero (PSOE) ao poder em Espanha depois do afundamento do PP em matéria de denúncia nas redes sociais.
Sou muito crítico do determinismo tecnológico e não atribuo qualquer importância ao facto de os jovens de hoje consumirem música à peça e não através de um disco completo. Associar a isso a ideia de atomização parece mais o reflexo de quem não convive bem com a evolução tecnológica do seu tempo. Mas quem é que o impede de continuar a consumir como a presumida boa tradição recomenda?

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