Tenho uma vaga, muito vaga recordação da tragédia
de SELMA, nos meus já longínquos 16 anos, quando iniciando o sexto ano do liceu
hoje Rodrigues de Freitas despertava para o que mais tarde iria conhecer como
ciências sociais e que me levou por vias muito travessas ao curso de Economia.
Uns anos mais tarde quando li a obra de Gunnar
Myrdal sobre a questão social negra nos Estados Unidos compreendi melhor o
impacto das poucas notícias que o regime de Salazar permitiu que fossem divulgadas
em Portugal.
As comemorações dos 50 anos da grande marcha e
acontecimentos posteriores na ponte Edmund Pettus, sobre o Alabama de todas as
vergonhas, gerados pela desumana e desproporcionada carga policial que
impactaram a América mais renitente, são um daqueles momentos em que
compreendemos que o nosso equilíbrio mental depende também e de que maneira do
simbólico da política e do arrebatamento.
Comemorar um dos acontecimentos que talvez tenham
marcado indelevelmente a história racial nos EUA com um Presidente eleito e um
Congressista reputado e reconhecido, Obama e John Lewis, ambos negros não é uma
oportunidade qualquer. A coragem dos que protagonizaram a longa marcha e dos
que ousaram quebrar os limites que o ódio racial pretendia que fossem internalizados
pelo medo, que tudo reproduz sem que os algozes tenham de se pronunciar, ficou
ali, naquela cerimónia e naquelas presenças, parcialmente retribuída apesar de
todas as interrogações ainda hoje visíveis na questão racial americana.
E, para mais, se bem que a intervenção política
de Obama tenha ficado globalmente abaixo das expectativas do YES, WE CAN,
muitas vezes incapaz de romper o muro republicano, hoje cada vez mais defensor
dos privilégios dos 1% mais ricos americanos e cada vez menos dos princípios
mais profundos do Partido Republicano, a força do discurso torrencial de Obama
regressou como que por encanto aquele momento, arrebatador, comovente,
confortador dos que viveram SELMA em 1965 e dos que estavam ali por via dos
testemunhos de seus pais, avós ou familiares.
A torrente avassaladora do discurso de Obama é
daqueles momentos em que nos reencontramos com a simbólica da política, em que
nos comovemos empaticamente com uma mensagem política e uma liderança, em que a
retórica da empatia se sobrepõe à preparação milimétrica do teleponto, em que
os assessores de comunicação são ultrapassados pela força de uma personalidade
e a população o compreende. Estes momentos são cada vez mais raros e não têm
nada que ver com discursos populistas que também podem atrair multidões de
desencantados. São momentos em que a empatia identitária é profundamente
sincera. Porque existe uma causa que não está ainda vencida. Porque existe
memória, vivenciada e de testemunho intergeracional. Mas será que existem
outras causas para além da racial que possam aspirar à raridade excecional?
Provavelmente o legado de Obama ficará limitado à
sua porfiada luta de implantação do Obama Care. Lamentaremos que a sua política
económica tenha ficado aquém do que se exigiria a uma recuperação mais rápida
da economia americana, que teria sido tão necessária como estímulo global da
economia mundial e como farol denunciador dos erros da política económica e
monetária europeia antes de Draghi ter sido tocado pelos meandros da deflação. Mas
o discurso de SELMA na ponte Pettus bastará para compreender o significado
profundo da sua eleição e para manter viva a réstia de esperança de que YES WE
CAN, de que a política vale a pena, de que um discurso pode mexer connosco e
nos arrebatar, e de que a “ciência” de tudo isto estará na definição seletiva
de um conjunto reduzido de causas pelas quais nos bateremos sem tréguas.
Mas a América é tão longe!
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