quarta-feira, 11 de março de 2015

SELMA, OBAMA NO ALABAMA PROFUNDO




Tenho uma vaga, muito vaga recordação da tragédia de SELMA, nos meus já longínquos 16 anos, quando iniciando o sexto ano do liceu hoje Rodrigues de Freitas despertava para o que mais tarde iria conhecer como ciências sociais e que me levou por vias muito travessas ao curso de Economia.
Uns anos mais tarde quando li a obra de Gunnar Myrdal sobre a questão social negra nos Estados Unidos compreendi melhor o impacto das poucas notícias que o regime de Salazar permitiu que fossem divulgadas em Portugal.
As comemorações dos 50 anos da grande marcha e acontecimentos posteriores na ponte Edmund Pettus, sobre o Alabama de todas as vergonhas, gerados pela desumana e desproporcionada carga policial que impactaram a América mais renitente, são um daqueles momentos em que compreendemos que o nosso equilíbrio mental depende também e de que maneira do simbólico da política e do arrebatamento. 

Comemorar um dos acontecimentos que talvez tenham marcado indelevelmente a história racial nos EUA com um Presidente eleito e um Congressista reputado e reconhecido, Obama e John Lewis, ambos negros não é uma oportunidade qualquer. A coragem dos que protagonizaram a longa marcha e dos que ousaram quebrar os limites que o ódio racial pretendia que fossem internalizados pelo medo, que tudo reproduz sem que os algozes tenham de se pronunciar, ficou ali, naquela cerimónia e naquelas presenças, parcialmente retribuída apesar de todas as interrogações ainda hoje visíveis na questão racial americana.
E, para mais, se bem que a intervenção política de Obama tenha ficado globalmente abaixo das expectativas do YES, WE CAN, muitas vezes incapaz de romper o muro republicano, hoje cada vez mais defensor dos privilégios dos 1% mais ricos americanos e cada vez menos dos princípios mais profundos do Partido Republicano, a força do discurso torrencial de Obama regressou como que por encanto aquele momento, arrebatador, comovente, confortador dos que viveram SELMA em 1965 e dos que estavam ali por via dos testemunhos de seus pais, avós ou familiares.
A torrente avassaladora do discurso de Obama é daqueles momentos em que nos reencontramos com a simbólica da política, em que nos comovemos empaticamente com uma mensagem política e uma liderança, em que a retórica da empatia se sobrepõe à preparação milimétrica do teleponto, em que os assessores de comunicação são ultrapassados pela força de uma personalidade e a população o compreende. Estes momentos são cada vez mais raros e não têm nada que ver com discursos populistas que também podem atrair multidões de desencantados. São momentos em que a empatia identitária é profundamente sincera. Porque existe uma causa que não está ainda vencida. Porque existe memória, vivenciada e de testemunho intergeracional. Mas será que existem outras causas para além da racial que possam aspirar à raridade excecional?
Provavelmente o legado de Obama ficará limitado à sua porfiada luta de implantação do Obama Care. Lamentaremos que a sua política económica tenha ficado aquém do que se exigiria a uma recuperação mais rápida da economia americana, que teria sido tão necessária como estímulo global da economia mundial e como farol denunciador dos erros da política económica e monetária europeia antes de Draghi ter sido tocado pelos meandros da deflação. Mas o discurso de SELMA na ponte Pettus bastará para compreender o significado profundo da sua eleição e para manter viva a réstia de esperança de que YES WE CAN, de que a política vale a pena, de que um discurso pode mexer connosco e nos arrebatar, e de que a “ciência” de tudo isto estará na definição seletiva de um conjunto reduzido de causas pelas quais nos bateremos sem tréguas.
Mas a América é tão longe!
                                                 

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