Durante três semanas fiz papel de idoso estatístico
com ascendente a seu cargo, percorrendo uma curta experiência de hospitalização
privada e uma outra mais longa de hospital público, transformando o tema da saúde
que por vezes emerge neste blogue não numa reflexão distante, mesmo que
pensada, mas numa experiência vivida, com um ritual extenuante.
Durante estas três semanas e pela observação
intensa a que fui sujeito confirmei o que já intuíra há longo tempo, que o SNS é
a última e definitiva proteção para uma vastíssima massa de população
portuguesa, com condições de vida que os autores de programas partidários estão
longe de compreender e, pelo menos, de perceber que existem, que as pessoas
vivem mesmo assim.
Percebi que as unidades de cuidados intensivos e
de cuidados intermédios são verdadeiras estruturas de comando, que a presença
de gente nova, provavelmente inexperiente de curriculum acumulado e de um corpo
de enfermagem cada vez mais qualificado não torna tais unidades menos
eficientes, que se trata de estruturas claramente acima do país que somos com
todas as nossas vulnerabilidades.
Percebi também que a passagem dessas unidades
para os serviços de enfermarias mais tradicionais corresponde à passagem para um clima em
que o caos pode imperar, em que a perceção de unidade de comando é incomparavelmente
mais ténue, em que tudo pode acontecer até o melhor e o inesperadamente positivo,
mas em que os problemas de coordenação e de comunicação entre médicos são
claramente menos operantes e claramente tributários do modo como cada profissional
exerce a sua atividade.
Percebi que o SNS não está ainda orientado e
organizado em função do utente, que as maiores vulnerabilidades estão na questão
organizacional e na cooperação entre recursos, que a comunicação do que se faz
de bem no sistema público é péssima e não profissional, sobretudo face ao
gigantesco investimento de marketing com que o sistema privado nos bombardeia.
Percebi que as questões da literacia básica da
esmagadora maioria de população portuguesa só protegida pelo SNS são
aterradoras e que toda a comunicação médica não está preparada para superar
essa dificuldade.
Percebi que o cenário de envelhecimento demográfico
vai dominar os cuidados hospitalares nos próximos tempos.
Vivenciei e não o deveria ter presenciado, porque
essas comunicações devem ser feitas no recato de um gabinete médico e não no
canto de uma enfermaria, a incredulidade de uma médica diligente e apostada em
cumprir com o seu código perante a incapacidade de uma mãe de 40 anos e de um
filho de 20 anos compreenderem a mensagem de que a primeira teria poucos meses
de vida, rejeitando por isso o conselho médico de que deveriam contactar o
chefe de família ausente em Angola em trabalho profissional.
Entraremos agora após esta experiência de descida
ao real da sociedade portuguesa no universo dos cuidados especializados em
ambiente de casa. Um outro mundo, mas que também faz parte do contexto em que vão
ter de processar-se futuramente as grandes escolhas públicas.
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