domingo, 8 de março de 2015

TRÊS SEMANAS DE SNS



Durante três semanas fiz papel de idoso estatístico com ascendente a seu cargo, percorrendo uma curta experiência de hospitalização privada e uma outra mais longa de hospital público, transformando o tema da saúde que por vezes emerge neste blogue não numa reflexão distante, mesmo que pensada, mas numa experiência vivida, com um ritual extenuante.
Durante estas três semanas e pela observação intensa a que fui sujeito confirmei o que já intuíra há longo tempo, que o SNS é a última e definitiva proteção para uma vastíssima massa de população portuguesa, com condições de vida que os autores de programas partidários estão longe de compreender e, pelo menos, de perceber que existem, que as pessoas vivem mesmo assim.
Percebi que as unidades de cuidados intensivos e de cuidados intermédios são verdadeiras estruturas de comando, que a presença de gente nova, provavelmente inexperiente de curriculum acumulado e de um corpo de enfermagem cada vez mais qualificado não torna tais unidades menos eficientes, que se trata de estruturas claramente acima do país que somos com todas as nossas vulnerabilidades.
Percebi também que a passagem dessas unidades para os serviços de enfermarias mais tradicionais corresponde à passagem para um clima em que o caos pode imperar, em que a perceção de unidade de comando é incomparavelmente mais ténue, em que tudo pode acontecer até o melhor e o inesperadamente positivo, mas em que os problemas de coordenação e de comunicação entre médicos são claramente menos operantes e claramente tributários do modo como cada profissional exerce a sua atividade.
Percebi que o SNS não está ainda orientado e organizado em função do utente, que as maiores vulnerabilidades estão na questão organizacional e na cooperação entre recursos, que a comunicação do que se faz de bem no sistema público é péssima e não profissional, sobretudo face ao gigantesco investimento de marketing com que o sistema privado nos bombardeia.
Percebi que as questões da literacia básica da esmagadora maioria de população portuguesa só protegida pelo SNS são aterradoras e que toda a comunicação médica não está preparada para superar essa dificuldade.
Percebi que o cenário de envelhecimento demográfico vai dominar os cuidados hospitalares nos próximos tempos.
Vivenciei e não o deveria ter presenciado, porque essas comunicações devem ser feitas no recato de um gabinete médico e não no canto de uma enfermaria, a incredulidade de uma médica diligente e apostada em cumprir com o seu código perante a incapacidade de uma mãe de 40 anos e de um filho de 20 anos compreenderem a mensagem de que a primeira teria poucos meses de vida, rejeitando por isso o conselho médico de que deveriam contactar o chefe de família ausente em Angola em trabalho profissional.
Entraremos agora após esta experiência de descida ao real da sociedade portuguesa no universo dos cuidados especializados em ambiente de casa. Um outro mundo, mas que também faz parte do contexto em que vão ter de processar-se futuramente as grandes escolhas públicas.

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