sábado, 21 de março de 2015

DE DELORS A JUNCKER


Mais uma incursão pessoal por uma certa Europa profunda, leia-se Estrasburgo e Bruxelas, com aquele período de texto que guardei da Alexandra Lucas Coelho a vir-me à memória num pano de fundo extensivo que vale obviamente mais pelo espírito do que pela letra: “Cabul parece perigoso visto da Europa, depois Kandahar parece perigoso visto de Cabul, depois Arghandab parece perigoso visto de Kandahar”.

Na capital da Alsácia, o melhor de tudo esteve naquela volta pela cidade com passagem pela excelente livraria Kleber e naqueles magnífico jantar e agradável serão em casa da Fernanda Gabriel e do Jack Hanning, duas personagens muito especiais nas suas tão visível complementaridade e rara combinação de despretensiosa simpatia e sabedora lucidez que faz o segredo dos bons convivas. E que confortável é constatar que as almas gémeas existem e até conseguem deixar irradiar alguma da sua luz!

Já em Bruxelas, onde um sol aberto impunha a sua lei (a tradição já não é o que era!), o mais relevante foi assistir àquele evento no Sofitel da Place Jourdan em que dois prestigiados think tanks (“Les Amis de l’Europe” e “Notre Europe – Institut Jacques Delors”) reuniram duas centenas de pessoas para – a pretexto de duas datas, os 100 dias de Juncker e o 20º aniversário do termo da Comissão Delors – ouvirem e debaterem com o atual presidente da Comissão Europeia e um ex-vice-presidente dos primeiros anos 80 (Étienne Davignon) em torno do sugestivo mote “The Commission’s Leadership and the Governance of Europe”). Jacques Delors, presidente da Comissão durante dez gloriosos anos (1985/95), também estava anunciado mas razões de precaução médica levaram-no a não abandonar Paris e a enviar apenas um interessante contributo em vídeo.

Comecemos por este, que integrava quatro grandes mensagens:

· a primeira abordava as qualidades necessárias para se ser um bom presidente da Comissão, onde focou vários pontos (não se considerar um primus inter pares face aos governos mas alguém ao serviço destes, estabelecer uma real colegialidade entre os comissários, não esquecer que a Comissão possui o monopólio do direito de iniciativa e ter muita energia);

· a segunda sublinhava quanto a importância dos fatores humanos é sobrelevada pelas dimensões essenciais da arquitetura institucional e do contexto político (tendo referido explicitamente que, em certos períodos, a Comissão foi relegada para segundo plano, que o sistema institucional evoluiu num sentido contrário ao exercício do direito de iniciativa da Comissão e que, mais em concreto, não é porque controla as contas dos Estados membros da Zona Euro que ela detém mais poderes);

· a terceira reiterava o momento muito bom de compromissos dinâmicos que constituiu o período em que desempenhou funções com Mitterrand e Kohl do lado do Conselho;

· a quarta reconhecia que aquele exercício presidencial é bem mais complexo nos dias de hoje (por causa do estado da opinião pública no contexto de uma globalização traumática que conduziu à ascensão de movimentos populistas e requer muito trabalho ao nível nacional, por serem 28 os países participantes após um alargamento que foi uma necessidade histórica e 18 os membros de uma Zona Euro que veio criar uma dualidade que contribui para reforçar os egoísmos nacionais, por ter sido criado o lugar de presidente do Conselho de Ministros que se justificava para facilitar o funcionamento comunitário mas conduziu a uma clara degradação do sistema institucional originário (que define como muito simples: o Conselho fixa as grandes orientações, o Conselho de Ministros decide em frequente codecisão com o Parlamento e a Comissão executa e, sobretudo, tem o direito de iniciativa), o que concretiza em conclusão com a afirmação de que assistimos hoje ao Conselho tomar decisões que pertenceriam ao Conselho de Ministros por via de transactions de couloir que tornaram o sistema mais opaco e prejudicial ao papel que deve caber à Comissão.


Mas a figura central da sessão foi Juncker. Que, sendo uma velha e experimentada raposa, é também um bom e afável comunicador cujos atributos de bem-falante e bem-humorado não parecem todavia de molde a esconder totalmente a sinceridade da sua opção fundamental pelo lado certo, i.e., o do papel insubstituível do chamado “método comunitário”. Juncker elogiou Delors (“não é Delors quem quer” ou “Delors matou a euro-esclerose”), garantiu que se iria ocupar dos “grandes problemas” (que consubstanciou nas suas 10 prioridades) e deixar os cidadãos em paz (“não acrescentar o supérfluo ao exagerado”), defendeu um reforço da aplicação do princípio da subsidiariedade e a sua ligação íntima ao conceito de solidariedade, referiu-se ao seu Investment Plan e ao seu apelo aos agentes privados, prometeu para junho um relatório conjunto sobre o aprofundamento da UEM e defendeu uma campanha eleitoral pan-europeia, uma aliança forte com o Parlamento Europeu, uma eficaz divisão do trabalho interna com delegação de competências em vice-presidentes conhecedores e com prática governativa, a reabilitação do método comunitário e o restabelecimento essencial da dimensão política da Comissão.

As perguntas foram múltiplas e variadas, com destaque para as da excelente jornalista do “Wall Street Journal” Valentina Pop. À qual respondeu em clara distanciação relativamente a dois abandonos possíveis da União (Brexit e Grexit) – embora sem abdicação de princípios basilares (liberdade de circulação dos trabalhadores e respeito pelos compromissos, designadamente em cada um dos casos) e voltando a insistir na “dignidade do povo grego”, na “espécie de crise humanitária” que se vive na Grécia e numa negação do “18 contra 1” de que os nossos tanto gostam – e de forma exemplar quanto à excessivamente badalada questão de um “exército europeu” (ficaria orgulhoso de mim próprio se tivesse pretendido lançar uma estratégia para colocar a questão na agenda, disse, mas infelizmente apenas respondi a um jornalista alemão que me interrogou sobre se era a favor ou contra o dito e eu limitei-me a ripostar que era a favor, acrescentou). Uma outra referência muito fortemente crítica de Juncker correspondeu àquilo que designou por “desastre da comunicação dos governos nacionais sobre assuntos europeus” e que traduziu pelo contrassenso das “vitórias nacionais” (que são necessariamente derrotas de outros parceiros), afinal um “modo de jogo de soma zero e contrário ao espírito da União Europeia com que os governos nacionais apresentam o decision-making europeu”.

O momento mais hilariante para a sala estava guardado para o finzinho. Juncker, que tinha pressa de acabar porque se preparava para ir ao encontro de Tsipras, respondeu a um último pacote de cinco questões vindas da assistência esquecendo uma delas. A respetiva autora, uma eurodeputada portuguesa, levantou o dedo em sinal amigável de protesto ao que ele reagiu dirigindo-lhe um igualmente amável pedido de desculpas (“on my knees”) que de imediato foi por aquela seguido de um espontâneo “I love that” que pôs a sala à gargalhada. Já quanto à esperada resposta em suspenso, que tocava a sensibilização de Juncker para a convergência real que estivera na agenda Delors e não para a mera convergência nominal, ela ficou praticamente no tinteiro...

Sem comentários:

Enviar um comentário