quinta-feira, 14 de maio de 2015

A MACROECONOMIA E A POLÍTICA




Tratava-se de uma crónica anunciada. Os programas de ajustamento impostos pela nomenclatura europeia necessitavam de uma narrativa depois de concluídos os processos de resgate para se autojustificarem, mesmo que por aí abundem apóstolos interessados em animar essa narrativa embora desprovidos de evidência robusta para o fazer, caso do nosso primeiro-ministro.

Era assim de prever que o comportamento macroeconómico da zona euro e da União Europeia como um todo e dos países recém-saídos do percurso punitivo do ajustamento fosse utilizado nesse sentido, sobretudo quando tais comportamentos anunciassem o regresso do crescimento económico. Como tenho vindo a assinalar, o verdadeiro termo de comparação não é o comportamento das economias após os processos de ajustamento. É antes o estado em que estariam hoje o produto e o emprego dessas economias acaso os processos de ajustamento tivessem sido conduzidos com outro racional de tempo e de equilíbrio entre austeridade e medidas pró-crescimento. Mas o problema é que na comunicação política o contrafactual (o que seria das economias caso tivéssemos outros processos de ajustamento) é sempre mais difícil de fazer passar junto da opinião pública do que mostrar o comportamento efetivo dessas economias após os ajustamentos, sobretudo se o crescimento económico tiver regressado.

Vejamos então como se situam as diferentes posições face ao regresso do crescimento económico, ainda que moderado, pouco tempo depois de concluídos os processos de ajustamento.

O primeiro grupo vamos designá-lo de inveterados seguidores dos métodos punitivos de ascendência alemã, entre os quais pode destacar-se pelo desaforo e impunidade de alguns raciocínios (ver post do meu colega de blogue sobre a cantilena de Passos em torno das analogias terapêuticas) Passos Coelho. Este grupo, embora não disponha de evidência empírica sistematizada para o fazer, agarra-se à ideia de que foram as estafadas “reformas estruturais” impulsionadas pelos ajustamentos, leia-se a desregulamentação do mercado de trabalho e a desvalorização interna rebaixando o preço do trabalho, forçando as relações capital-trabalho a favor do primeiro e a recuperação da confiança dos mercados consolidando abruptamente contas públicas, que explicaram a retoma do crescimento económico.

Um segundo grupo apontará antes para os efeitos da intervenção do BCE, primeiro com a acalmia do mercado das dívidas soberanas (o BCE fará o que for necessário para manter a estabilidade do euro) e depois, ainda mais decisivamente, com o quantitative easing ainda em curso que procura abanar o crédito às empresas como o principal fator explicativo da retoma. Este segundo argumento é curioso porque contraria frontalmente as pretensões explicativas do primeiro grupo. O quantitative easing visou combater radicalmente (tanto quanto um processo monetário o pode fazer) os riscos de estagnação deflacionária em que as economias europeias se encontravam após a crise das dívidas soberanas, o que contradiz frontalmente a bondade das reformas estruturais e do ajustamento em termos de crescimento económico.

Um terceiro grupo alinhará sobretudo o argumento de que as economias recuperaram porque abrandou a consolidação fiscal num grande número de economias, ou seja, a política macroeconómica tornou-se menos restritiva. Ora os multiplicadores da despesa mostram que quando se corta despesa o produto é que sofre, pelo que quando esse corte é desacelerado ou mesmo suspenso o produto pode recuperar. O segundo e o terceiro grupos têm argumentação que se completa, ou seja, para que o quantitative easing chegue à economia real aumentando a procura de crédito era necessário bloquear as restrições de procura.

Um quarto grupo dirá simplesmente que não há expansão que sempre dure e recessão que nunca acabe, essa é a história do capitalismo, tendo as economias europeias e americana pago já um preço elevadíssimo pelo facto de termos tido uma recuperação lenta, demorada e por vezes agónica.

Não sendo um seguidor da cantilena das reformas estruturais, pelo destas que nos quiseram impingir, a minha posição desloca-se pelos segundo e terceiro grupos que apresentam argumentos mais robustos. Mas, de qualquer modo, a nomenclatura europeia precisava de uma narrativa para branquear a sua insensibilidade. Primeiro, a Irlanda deu-lhe alguma base de narrativa, mas rapidamente se percebeu que a Irlanda não é facilmente replicável. Ou seja, não há praticamente economia europeia que tenha uma base exportadora tão preparada para arrancar haja, sobretudo do outro lado do atlântico, procura suficiente. E foi isso que sucedeu.

É nesta narrativa que entra o caso britânico. O Reino Unido não constitui propriamente um país sob ajustamento, mas é fundamental para robustecer a cartilha. É-o porque adotou, embora com moeda própria e um outro poder de mercado, políticas restritivas para atacar os efeitos da crise de 2007-2008 sobre as finanças do governo trabalhista e o eleitorado validou para surpresa minha, tenho de o confessar, a abordagem. O caso inglês é um caso típico da dificuldade de comunicação do contrafactual. O gráfico que abre este post mostra claramente onde deveria estar o produto britânico acaso não houvesse o desvio austeritário do governo britânico. Mas o comportamento do mercado de trabalho britânico, à custa de baixos salários e de fraca produtividade, criou com a recuperação do produto uma imunidade à crítica do contrafactual.

E, ainda mais recentemente, a recuperação da economia espanhola parece emergir como sendo a estrela da narrativa, à qual a Comissão Europeia se agarra desesperadamente. E foi preciso o economista-chefe do FMI, o honesto e clarividente Olivier Blanchard, vir a terreiro e, não menosprezando o crescimento recente da economia espanhola, afirmar que um crescimento económico com 24% de desemprego não pode ser considerado um crescimento-modelo, por mais narrativa que possamos construir.

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