domingo, 31 de maio de 2015

O MISTÉRIO PROFUNDO DA MUDANÇA SOCIAL NUM PAÍS COMO O IRÃO

(Jovens na galeria Mohsen em Teerão, Financial Times)


(A desesperante incapacidade do ocidente perceber os outros)

Sou fraco andarilho intercontinental e tenho de confessar que o oriente nunca me entusiasmou. Para além disso, já não será com esta idade que se consertam estas coisas, provavelmente provenientes de uma educação pequeno-burguesa e securitária em demasia. O exotismo de outras paragens nunca me seduziu particularmente e encaro-o como uma limitação, sobretudo para quem se iniciou nos estudos do desenvolvimento.

Nesse registo e profundamente interessado pelas questões da mudança social em economias com forte potencial de crescimento económico, recordo-me que a explosão inesperada para muitos da revolução iraniana de 1979, quando os ayatollah precipitaram a deterioração das relações do Irão com os Estados Unidos da América e ocuparam as instalações da Embaixada americana com estrondo mediático por todo o mundo, provocou uma forte crise identitária na sociologia ocidental, sobretudo na americana. Predominava então por toda a academia ocidental a convicção de que a ocidentalização do Irão estava em marcha e que tal justificava o apoio ao poder do Xá que havia de ser expulso do processo. Aquelas majestosas manifestações públicas de hordas imensas de gente vestida de preto que ocupou o espaço público das cidades iranianas, cuja dimensão tornava praticamente improvável qualquer preparação engenhosa das mesmas, irrompia contra as convicções pretensamente sólidas da academia ocidental, então surpreendida e petrificada pela emergência violenta dos traços mais profundos de rebelião cultural anti-ocidente e mais acentuadamente anti-americanas.

Esta breve incursão pela memória dos meus registos de processos de mudança social com profunda rotura dos trends que se estimavam sólidos e à prova de qualquer tradicionalismo mais radical tem uma justificação. O Financial Times on line tem hoje uma peça notável de um editor de política externa Roula Khalaf, centrada na desesperada tentativa de uma geração de jovens à normalidade: “Iran’s Generation Normal”. Dei comigo a pensar que o ocidente não aprende. Assim, como há muitos anos atrás não compreendeu como a ocidentalização do Irão era falsa e simplesmente colada (sabe-se lá com quê!), provavelmente agora não será capaz de entender o potencial de transformação social que uma geração mais jovem e mais qualificada de iranianos apresenta no contexto de uma mais intensa circulação de ideias e de trends à escala mundial. O cinema de Kiarostami e outros cineastas iranianos menos conhecidos, a plêiade de criativos que a sociedade iraniana vai gerando, as manifestações de moda em Teerão e outros pulsares da geração jovem mais qualificada, mais conectada com o mundo e por isso mais propensa à recetividade dos trends ocidentais. Não será por acaso que o Ali Khamenei líder supremo ainda há pouco tempo se referia à guerra cultural que a sociedade iraniana trava com “as más influências do ocidente”, sobretudo travada através da maior propensão à abertura que os mais qualificados, empreendedores e conectados revelam. E como Khalaf o assinala, a sociedade iraniana passou de uma taxa de urbanização de 48,7% em 1979 para 71% no presente, o que anuncia uma profunda mudança estrutural com profundas implicações. O sociólogo Hamid-Reza Jalaipour da Universidade de Teerão traz para a recolha das evidências de mudança um acontecimento que passou despercebido no ocidente mas que ele associa a uma profunda viragem. No funeral de um cantor popular, cerca de 100.000 jovens juntaram-se e quebraram o vínculo do tradicionalismo rejeitando a separação entre rapazes e raparigas, juntando simplesmente as mãos numa manifestação gigantesca de autonomia, facto a que também não será estranho o aumento da percentagem de mulheres com formação universitária que caminha rapidamente para os 20%.

O que esta peça do Financial Times nos mostra é que o verdadeiro desenvolvimento liberta as forças da mudança social e uma de duas: ou artificialmente essas forças são domesticadas e o processo de desenvolvimento está a ser truncado ou então o desenvolvimento liberta irreversivelmente essas forças. E a mudança é apenas, imaginem bem, o desejo de uma normalidade. Não terá sido por acaso que a sociedade iraniana recebeu com regozijo manifesto o acordo em questões nucleares com Obama. Afinal, tal acordo potencia a tal normalidade. Será o Ocidente capaz de entender de uma vez por todas a mudança social nestes contextos? Talvez se o fizer a paz mundial agradeça.


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