O título é aparentemente enigmático mas tem que ver simplesmente com a
recuperação num almoço descontraído, em casa, de um programa da SIC Notícias,
creio que passado sábado ou domingo à noite, protagonizado por António José
Teixeira (o entrevistador) e Manuel Sobrinho Simões (o entrevistado). E
recuperá-lo por que razão para este blogue? Simplesmente, porque há momentos,
infelizmente raros, cada vez mais raros, em que de repente sentimos de novo
algum prazer e retribuição de sermos portugueses e ganhamos resistência, como
os camelos, para suportar toda a imbecilidade, estupidez e pavoneamento acéfalo
que nos rodeia e nos povoa de ruído e informação desnecessários.
O discurso de MSS flui como corrente de água mais pura e cristalina pela
sua maneira muito particular de viver e compreender a medicina e a
investigação, nunca perdendo de vista a cultura antropológica dos portugueses,
a sua perceção (vivida) dos interesses menos claros, a sua profunda humanidade,
a simplicidade e despojamento apenas ao alcance dos que sabem muito, a sua
permanente e fundamentada capacidade de nos comparar (é deliciosa a sua
expressão muito anglo-saxónica de aquilo e aqueloutro compara com o melhor que
se pratica por esse mundo), a sua rigorosa necessidade de delimitação do
público e do privado, no fundo a sua espantosa capacidade de explicar a ciência
e os meandros e conflitos éticos da medicina atual, no quadro da escassez de
recursos públicos. É convincente a forma como explica que o sobrediagnóstico e
a sobremedicamentação dos portugueses arruínam o orçamento do SNS e,
simultaneamente, constituem um indicador expressivo de subdesenvolvimento, de
iliteracia e de falta de confiança nas instituições, à qual se contrapõe uma
prática médica cada vez mais insegura, cada vez mais deixa andar,
crescentemente incapaz de tomar uma decisão que vá contra o despesismo sem
sentido do excesso de diagnóstico e de medicamentação desregrada e caótica. É
pedagógica a maneira como explica que há vícios estruturais no estado da saúde
em Portugal que só se ultrapassam pela mudança de comportamentos familiares e
individuais, para os quais só a família e a escola são o local certo para
combater. É arrasador o diagnóstico de que 1% do PIB nacional e 10% do
orçamento do SNS se gastam em patologias associadas à diabetes, cuja grande
maioria é evitável por mudanças comportamentais e de normas de consumo.
A entrevista foi também particularmente expressiva dos rumos da chamada
investigação translacional que se pratica no IPATIMUP (estendida espera-se ao
I3S). É de facto extremamente inovador o modo como os recursos de investigação
em torno do cancro, num contexto de país sem massas críticas relevantes de
indústria farmacêutica, se articulam com unidades hospitalares como o IPO e o
Hospital S. João para, em permanente interação com a prática clínica,
desenvolverem novas soluções terapêuticas e atraírem por essa via a cooperação
com a indústria. Ficamos também a saber que num contexto de financiamento que
estava relativamente equilibrado no 1/3 de apoio público, 1/3 de filantropia e
1/3 de receitas próprias do IPATIMUP, o equilíbrio está hoje destruído porque o
apoio público tem descido perigosamente para níveis de 1/5 e até 1/6. MSS
aproveita a onda para criticar a deriva individualista, o estímulo do salve-se
quem puder, o endeusamento doentio e acéfalo do empreendedorismo em matéria de
apoios à ciência e tecnologia descurando o aspeto nevrálgico da
sustentabilidade das instituições como um todo. Com a sua graça diria quase
queirosiana, MSS afirma que os portugueses não precisam de modo nenhum de
estímulos de comportamento de minifúndio. E acerta na mouche, pois em contextos
de reduzidas massas críticas de recursos de investigação, estimular o
individualismo na procura de financiamentos sem cuidar da sustentabilidade das
instituições de excelência é criminoso e sobretudo suicida.
Estava a ouvir MSS e a recordá-lo há longo tempo num serão familiar em casa
da Engª Cândida Barreto onde o mesmo registo coloquial nos capturava sem o menor
esforço. Mas ao ouvi-lo também me recordei de imensas charlas e conversas com o
saudoso Professor Nuno Grande, de há trinta anos, na tertúlia quase clandestina
da RESULTANTE, onde também fluía a mesma capacidade inventiva da medicina.
Por isso, sobram-me impressões ambivalentes: a recuperação de algum orgulho
pela sociedade portuguesa gerar personalidades e pensamentos deste calibre, mas
também a incomodidade por avançarmos tão pouco nestas matérias comportamentais
e organizacionais diagnosticadas há tanto tempo. E, por esse motivo e
contributo modesto, faço jura de que pela minha parte os meus netos Margarida e
Francisco irão contribuir para uma mudança comportamental em termos de consumo
do açúcar e já agora do sal.
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