Com o fim dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito e a aprovação do respetivo relatório, acaba de terminar uma fase importante de tentativa de apuramento dos factos relacionados com o colapso do BES e do Grupo Espírito Santo. E ou muito me engano ou teremos muito que aguardar até que muito mais se venha objetivamente a esclarecer, para já não falar de vermos a Justiça a funcionar – talvez na próxima geração, quem sabe?
A primeira grande conclusão deste processo, não inteiramente uma novidade mas resultando agora esparramadamente, foi a de que a normalização democrática em Portugal deu lugar a um regime que se foi tornando cada vez mais largamente dependente de um autêntico tigre de papel financeiro – na seu modo de reconstituição inicial, na sua altíssima fragilidade em capitais próprios e correspondente peso das engenharias bancárias e financeiras de que crescentemente carecia, nas suas práticas informais e personalizadas de gestão e correspondentes debilidades organizacionais – que se ia mantendo e reproduzindo através de um infernal círculo vicioso de que eram elementos essenciais as estreitíssimas ligações do Grupo com o poder político e o seu assumido e real papel de “banco das PMEs” (não minimizando aqui as respetivas contrapartidas em termos de acumulação de riqueza fora do País).
Não se infira, obviamente, do que acaba de ser afirmado que não possam ter existido, como parece claramente ter ocorrido, situações que extravasaram os ditos pontos fracos para penetrarem o mundo da manipulação, das irregularidades e do crime. Mas se Ricardo Salgado é o mais acusado, decerto justamente quer por via das suas responsabilidades no topo do Grupo quer por via de alguns factos entretanto revelados (como aqueles 1,5 mil milhões de euros em dois meses), importará não esquecer outras culpas. Como aliás o relatório parlamentar sugere e Mariana Mortágua tanto fez por sublinhar – “o maior erro é achar que isto é culpa do Ricardo Salgado” – e como bem foi ficando provado pelo confortável modo de vida e pelo comprometedor silêncio, “enquanto deu”, de inúmeros familiares, administradores, dirigentes e altos quadros do Grupo e seus mais ou menos visíveis apêndices.
E por falar em culpas, não quereria deixar de referenciar também as que mais objetivamente devem ser imputadas a quem sempre teve necessariamente de estar mais por dentro do coração dos problemas que emergiam, no quadro de uma função supostamente técnica e independente: os auditores externos (as mais das vezes grandes firmas de auditoria internacional). Para não falar de alguns dos grandes gestores do regime (PT à cabeça) e, mais tarde, daquela salvífica e arrogante Troika que, quanto mais se vai podendo escarafunchar no que foi a sua atividade, mais se vai descobrindo quanto a sua missão foi ideológica, incompetente e até conivente.
Depois, e igualmente decisiva a múltiplos títulos (incluindo, naturalmente também, o papel de capitais angolanos na nova configuração do capitalismo português), a questão de Angola e do seu desproporcionado impacto na história recente do BES e na sua inevitável resolução em 2014. Começando pelos diamantes e pela extraordinária ação da ESCOM, com todas as suas derivações passadas, presentes e futuras, prosseguindo com o determinante volume de empréstimos do BES ao BESA (estando por saber a muito relevante e completa extensão das operações que lhe estiveram associadas e a distribuição pelos respetivos beneficiários) e culminando com a posição adotada pelo Estado angolano de rechaçar a garantia soberana que havia sido assinada pela mão de José Eduardo dos Santos.
E só chegados aqui, após manadas de elefantes terem sucessivamente passado diante dos nossos olhos, é que a meu ver se pode colocar o problema da supervisão. Mas não para assacar ao Banco de Portugal (BdP) e a Carlos Costa o erro que o facilitismo de comentaristas e políticos castigadores lhes querem imputar. Porque o que ficou bem à vista foi que a resolução do BES era a única solução viável naquele início de agosto – e façam só o exercício de imaginar o que teriam aqueles dito em caso de envolvimento direto do Estado português! – e que foi conduzida de modo exemplar, dele não tendo resultado, ao contrário de outros casos comparáveis, quaisquer perdas para depositantes ou obrigacionistas seniores do banco mas apenas para titulares de aplicações de risco (disso conhecedores ou não é toda uma outra questão). E porque, sendo tal obviamente indemonstrável a posteriori, teria sido arrasadora para a estabilidade do sistema financeiro português a “atempada intervenção” nessa loja de porcelana por que tantos corajosos mas ignorantes treinadores de bancada reclamam (inibindo Ricardo Salgado, não negociando com Ricardo Salgado, não invocando a blindagem e por aí fora). Também não referencio a supervisão para atacar o governador “à la Carlos Tavares”, dentro de uma lógica de defesa dos investidores (como compete à CMVM) que virou populista pelo seu intransigente maximalismo e correspondente recusa de percecionar as outras equações do sistema – ou seja: são por demais desejáveis todas as iniciativas tendentes a produzir uma mais eficaz colaboração entre as duas entidades em causa, mas tal não pode advir da pura e lírica exigência de impossíveis.
Dito isto, mal feito fora que erros pontuais por parte do BdP não tivessem de ter necessariamente existido (devido aos múltiplos agentes que, em seu nome, intervieram no processo, em declarações ou redações menos cuidadas, no decorrer de telefonemas sob a pressão dos acontecimentos e até por força de uma postura institucionalista e tendencialmente obediente que acabou por ser muito agravada pelo falso alheamento governamental). Por outro lado, os riscos estão longe de estar esgotados, antes mais diria que a procissão ainda vai no adro (quer quanto à venda do Novo Banco e ao superveniente fecho geral das contas, para não falar do que se seguirá a mais médio prazo, quer quanto ao tratamento dos detentores de papel comercial e outros investidores prejudicados e às infindáveis tramitações judiciais subsequentes). Mas a ideia que se tenta fazer passar de um BdP mais lento e permissivo do que rigoroso e tolerante é a maior de todas as injustiças de avaliação a que se chegou no estado atual de análise pública do processo – Carlos Costa esteve do lado dos bons, trabalhou muito e bem e a ele ficamos a dever significativamente a não concretização de um desastre maior e que esteve iminente...
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