terça-feira, 19 de maio de 2015

REFLEXÕES SOBRE A BOLA QUE JÁ ROLOU




(Para além da bola)

Não estava a pensar blogar sobre a Liga que se decidiu no último domingo. A minha relação com o futebol é cada vez mais dorida e solitária, já há longo tempo que não tenho uma experiência coletiva de futebol ao vivo e não consigo por inibição partilhar um ambiente de euforia clubista, em qualquer estádio, praça ou terreiro. Mas no domingo vi as coisas pretas, não sei se apoquentado por qualquer fantasma de Kelvin de poupa em riste. Explico-me. Domingo de manhã, em zapping fortuito pela Benfica TV, apanhei os últimos segundos do jogo para o título do campeonato nacional de iniciados, o Benfica-Sporting e mesmo no último segundo do período de descontos, depois de uma ofensiva perdida no último reduto do Sporting, um miúdo leonino envia pelo ar a bola para a área do Benfica e, perante uma saída suicida do jovem keeper, o Sporting marca, ganha o jogo e o campeonato. E aí este vosso amigo vociferou: Oh diabo!, os ventos não estão connosco. E ao fim da tarde quando os super-eficazes avançados do SLB começaram a falhar oportunidades sobre oportunidades e o Porto a ganhar no Restelo, então vociferei outra vez: Oh diabo! Isto está mesmo mau e vamos ter um último jogo de arrepiar. Mas quis o destino que o Julen nos brindasse com a saída de Brahimi e Quaresma, os centrais dos dragões se abrissem como mar dividido em dois e um tal Caeiro, de que nunca tinha ouvido falar, resolveu a coisa, precipitando um ajoelhar ainda mais simbólico do que aquele que Jesus protagonizou nas Antas perante o golo de Kelvin.

O post do meu colega de blogue é muito interessante sobretudo pelo que suscita de análise de comportamento organizacional em que o futebol é cada vez mais fértil. Sempre defendi, e tenho escritos sobre isso, pouco populares porque de autoria de alguém fora da tribo, que o FCP se destacou organizacionalmente na Região com um projeto que estava para além do futebol e que ganhou a Região (que não tinha) para adquirir uma inequívoca expressão nacional, fomentada pelo efeito de demonstração de vitória junto das populações mais jovens. Tal como a propósito da Região Autónoma da Madeira sempre fui capaz de distinguir entre o primarismo do discurso político de Jardim e a qualidade da sua administração pública regional, também a propósito do FCP me habituei a distinguir o tom por vezes a roçar o lúmpen de algum do seu discurso para massas e leitores de jornais rivais da qualidade da estrutura e da organização, visível do exterior mesmo para alguém não pertencente à tribo. É claro que quando se liam testemunhos mais elaborados de Pinto da Costa rapidamente se percebia que isto de ter andado nas Caldinhas tem que dar resultados algum dia. O Presidente do FCP sempre percebeu o universo de públicos em que se movimentava e o discurso da gestão interna não era por isso necessariamente idêntico ao discurso para o exterior. Não vou aqui explorar se Pinto da Costa tem dois quadros mentais. O que sei é que na altura o FCP era um projeto que estava para além do futebol e foi das primeiras iniciativas a tentar romper com os muros da Região (não sei se culturalmente o regionalismo não persistiu) e a partir dela construir uma expressão nacional.

O que o post do meu colega de blogue parece sugerir é que esse projeto se terá esgotado, estando provavelmente em transição para um novo ciclo de tentativa de afirmação nacional de que Lopetegui constituiria um dos instrumentos de execução. Não tenho elementos para me pronunciar sobre esse eventual esgotamento. Nem estou particularmente convencido de que o consulado Luís Filipe Vieira esteja a consolidar no SLB esse projeto, embora haja sinais (por exemplo o patrocínio da Emirates Airlines nas camisolas encarnadas) a sugerir essa transição de períodos de desnorte completo para um ciclo mais profissionalizado e financeiramente um pouco mais confortável, embora ainda perigoso. O futebol português vai ainda fazer o seu penoso ajustamento, tal como a economia portuguesa já o fez também penosamente ao predomínio viciante dos não transacionáveis. Muitas variáveis de interrogação vão colocar-se e não é seguro que seja possível avançar quem resistirá melhor à compressão de orçamentos, sobretudo sem uma adequada gestão de expectativas de adeptos que não está feita, diga-se.

Não tenho sinceramente qualquer prazer especial em concluir que o projeto organizacional FCP esteja em desagregação. Mas se o estiver, repito não tenho elementos seguros e fiáveis para o confirmar, então a questão interessa-me apenas do ponto de vista da desagregação institucional dos principais emblemas regionais. De facto, se pensarmos bem, as principais bandeiras institucionais da Região, por exemplo, AEP, Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional do Porto, CCDR-N, Associação Industrial do Minho e até a Associação Comercial do Porto, por muito que custe a Rui Moreira, estão hoje, senão agonizantes, pelo menos significativamente atrofiadas na sua força de promoção de um modelo de afirmação regional coerente, territorialmente coeso e capaz de construir uma VOZ NACIONAL a partir deste território. Talvez as Universidades do Porto e do Minho sejam a exceção e sobretudo o sistema científico e tecnológico que se estrutura em torno das mesmas. Mas, em meu entender, rapidamente, a sua afirmação as vai levar a um protagonismo internacional que, mais tarde ou mais cedo, como aconteceu com o grupo SONAE, por exemplo, as vai conduzir a desconstruir a sua matriz identitária regional e bem, acrescentarei eu. As razões deste declínio institucional estão pouco e mal estudadas e já há muito tempo que não dou para o peditório do centralismo atrofiador. Não há centralismo atrofiador sem reprodutores internos. Em meu entender, foi antes o regionalismo bacoco e serôdio que conduziu a esse declínio.

Finalmente, os últimos tempos da liga portuguesa ofereceram-me elementos deliciosos sobre o tema das competências. E aqui coloco de um lado Julen Lopetegui e do outro Jorge Jesus e acrescentaria o Petit, pequeno herói da resistência axadrezada, o meu primeiro clube de infância marcado pelo boavisteirismo do meu Pai. Não tenho dúvida de que do ponto de vista da formação científica e de metodologia de treino Lopetegui tem uma formação mais robusta e até de maior projeção e aplicação internacional. Como o Manuel Sérgio costuma dizer um treinador de futebol não treina apenas jogadores e aí parece estar o problema de Lopetegui, apesar da inovação do seguir os treinos do alto (dirá o Manuel José que um treinador que foi guarda-redes não terá nunca a visão apropriada do jogo!). Ora, Jorge Jesus é o que designo de especialista da decisão em contexto, com grande evolução nessa capacidade nos últimos tempos. Senão vejamos. Como é que o homem consegue fazer do matacão Jardel o substituto do elegante e super Garay (que o diga o André Vilas Boas), do zarolho e desconjuntado Pizzi o substituto de Enzo Perez, do panzer enferrujado Eliseu o defesa-esquerdo de que se andava à procura há décadas desde o sueco Schwartz, do já com botas enferrujadas Jonas um centro-avante de grande mobilidade e inteligência e ter ainda transformado Samaris de um oito em seis vital? E como é que o Petit antigo terror de canelas conseguiu fazer de uma equipa de campeonato distrital um sobrevivente da Liga? A tudo isto chamo eu formação e aprendizagem em contexto.

Mas vamos questionar a internacionalização possível destes intérpretes. Por muito que custe a Jorge Jesus e a Petit a formação de Lopetegui, mesmo depois de ajoelhar e tudo, é mais transferível para o plano internacional do que a dos seus vitoriosos adversários. Por muito que Jorge Mendes deseje o contrário em relação a Jorge Jesus.

Por tudo isto, o futebol é um mundo apaixonante muito para além da bola que rola.

Sem comentários:

Enviar um comentário