segunda-feira, 4 de maio de 2015

RIQUEZA, CAPITAL E DESIGUALDADE

(vídeo da conferência aqui)


(Um pouco técnico, preferencialmente para iniciados na teoria do crescimento económico)

Tal como referi no post anterior sobre a matéria, o tema da desigualdade, simultaneamente no que ele representa de oportunidade e desafio para aprofundamento e melhoria da teoria económica e de ameaça para a democracia e coesão social, é procissão que ainda não saiu do adro, sobretudo porque demora tempo a organizar e a disciplinar os participantes.

Do ponto de vista da teoria económica, objeto do meu post de hoje, há que convir, mesmo os mais críticos e desconfiados do êxito e popularidade da obra de Piketty, que esta tornou-se verdadeiramente incontornável para quaisquer desenvolvimentos que venham a tornar-se decisivos do ponto de vista do anunciar de novos rumos para o modo como a teoria económica trata as questões da distribuição do rendimento e da desigualdade. Não pode esquecer-se, e muitos têm nesta matéria autênticas amnésias seletivas, que a economia política, sobretudo os contributos seminais de David Ricardo, começou com a repartição do rendimento no âmago das suas reflexões e contributos para entender o capitalismo então emergente. Se os temas da repartição foram desaparecendo do mainstream isso deve-se a outras razões, entre outras coisas por se ter deixado de falar de economia política. Mas a distribuição do rendimento não deixou de ser o foco de alguns economistas que desde cedo começaram a remar contra a corrente. Nos últimos tempos tem-se falado muito, por exemplo, do artigo seminal de 1969 de Stiglitz sobre a matéria (Distribution of income and wealth among individuals, Econometrica), que é afinal o produto da sua tese de doutoramento, o que mostra bem que o desaparecimento do tema foi sempre virtual e sobretudo imposto pelas condições em que o pensamento económico é reproduzido nas universidades.

Mas voltando ao contributo central de Piketty que tanta produção e réplica tem suscitado, o que importa salientar é que a sua abordagem é realizada utilizando categorias que o mainstream económico considerava seu monopólio, designadamente algumas categorias que constam do modelo básico de crescimento económico de Robert Solow, que sempre fez parte da formação básica dos economistas e que tantas horas de esforço de preparação me custou para o transmitir, não o deixando de criticar, aos alunos que pelas minhas aulas passaram. O modelo é pedagogicamente difícil de transmitir a alunos menos motivados para as cogitações teóricas, dado ser um modelo a uma mercadoria global e por isso desmotivador para cabeças com reduzido poder de abstração. Entre essas categorias que Piketty utiliza estão grandezas como o stock de capital, o rácio capital/trabalho, o rácio capital-produto, a própria taxa de crescimento económico e conceitos ainda mais sofisticados como a elasticidade de substituição entre o capital e o trabalho, sobre cujo valor (< ou > 1) se discute hoje com intensidade em ambientes mais académicos.

A abordagem de Piketty é também similar à de outros economistas no sentido de que explora o confronto entre evidências empíricas mais recentes e os chamados factos estilizados que presidiram ao primado que o referido modelo de Solow exerceu durante longos anos. Entre esses factos estilizados estão os seguintes, que as economias tenderiam a percorrer evoluindo em torno de valores de equilíbrio: (i) os salários reais evoluiriam em função da produtividade do trabalho, sendo esta fundamentalmente determinada pelo progresso técnico, a cuja taxa cresceria também o rácio capital/trabalho; o rácio capital-produto tenderia a ser constante, as proporções dos salários e dos lucros no produto seriam constantes e a taxa de remuneração do capital também constante.

Vários economistas com destaque para Joseph Stiglitz e Branko Milanovic têm anotado algumas não conformidades que os dados sistematizados por Piketty revelam face aos factos estilizados que o modelo de SOLOW popularizou. Entre tais não conformidades não acomodáveis pela teoria do crescimento padronizada estão as seguintes (na versão de Stiglitz): (i) a taxa de lucro tem-se mantido relativamente constante apesar do aumento da intensidade em capital da economia, quando o esperado seria que descesse; (ii) a quota dos rendimentos do capital no produto tem aumentado; (iii) os salários têm permanecido estagnados apesar do aumento do rácio Capital /Produto (Rendimento).

Numa espécie de regresso ao seu artigo seminal de 1969, Stiglitz em conferência dos fins do ano passado organizada pelo INET (Institute for New Economic Thinking) foi dos primeiros a formular uma explicação para as aparentes perplexidades que as evidências de Piketty suscitaram. Apesar do seu caráter marcadamente técnico, atrevo-me com a ajuda de Milanovic a tratar aqui os contributos de Stiglitz porque entendo que eles são um contributo crucial para compreendermos com categorias económicas relativamente simples algumas das derivas do capitalismo contemporâneo.

Abreviando o teor da argumentação, Stiglitz diferencia o que Piketty parece homogeneizar, a riqueza Ɯ, que releva do domínio da distribuição pessoal do rendimento, e o capital K que remete para o mundo da produção, ou seja K seria o capital produtivo. Nesta representação simplificada, o produto Y é função de três fatores, o capital K, o trabalho L e a terra T, não entendida no sentido agrícola mas do capital imobiliário. Como veremos, nem toda a terra será produtiva. Neste modelo simplificado, a riqueza Ɯ é seguramente igual ao capital K mas temos de lhe adicionar a renda de capitalização fortemente influenciada pelo preço da terra (imobiliário).

Com desenvolvimentos técnicos que transcendem o alcance deste blogue, podemos ter uma situação em que o capital produtivo K se mantenha estável e, por força sobretudo da orientação do crédito, o preço do imobiliário pode aumentar, gerando sucessivos aumentos da renda de capitalização e consequentemente da riqueza Ɯ. Ou seja, o aumento da riqueza Ɯ pode ser compatível com a manutenção de K ou até da sua diminuição se o investimento não compensar a depreciação física do capital K com a usura do tempo. Por outras palavras ainda, o potencial produtivo da economia pode permanecer intacto, o que equivale a uma estagnação económica e, mesmo assim, a riqueza aumentar, com aumento do rácio Ɯ /Y. E se se confirmar a descida de K então poderemos ter uma descida da procura de trabalho, rebaixando salários.

Milanovic trabalha a intuição analítica de Stiglitz do ponto de vista da transmissão internacional deste mecanismo e, curiosamente, invoca o exemplo de Portugal. Imaginemos um processo de compra em Portugal de ativos imobiliários por parte de russos ou chineses decorrente de um boom de rendimento na origem. Podemos admitir que uma parte do fator terra (solo urbano e imobiliário) é retirado da produção, com a riqueza interna portuguesa Ɯ (PT) a aumentar sem crescimento económico, com o consequente aumento do rácio Ɯ/Y em Portugal.

Esta explicação é sobretudo sugestiva do ponto de vista dos seus efeitos dinâmicos. Na verdade, enquanto a subida do preço do imobiliário e da capitalização associada forem superiores à remuneração do capital produtivo, teremos uma afetação de recursos do investimento preferencialmente em T e não em K, distorcendo claramente o crescimento económico.

O modelo é sugestivo e é compatível com um significativo agravamento da distribuição do rendimento (desigualdade) desde que a apropriação da riqueza Ɯ seja privada e concentrada num conjunto reduzido de proprietários.

Vale a pena voltar ao tema, porque ele é crucial do ponto de vista da compreensão das derivas contemporâneas do capitalismo, levanta questões interessantes em termos de fiscalidade (um dos focos de Piketty) e até pode explicar as dificuldades da economia portuguesa abandonar o seu foco nos não transacionáveis.

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