quarta-feira, 20 de maio de 2015

E O DEBATE CONTINUA, ACESO




(Nos meandros da ciência económica)

O INTERESSE PRIVADO, ACÇÃO PÚBLICA teve a intuição certa quando antecipou que o retorno de Paul Romer aos meandros do debate das ideias económicas iria marcar o ambiente académico em 2015. E como uma sumária, e por isso muito falível, incursão pelo debate das ideias em Portugal mostra que as nossas cabeças pensantes estão a leste do movimento, o blogue pode orgulhar-se da sua intuição, se bem que maltratada pela nossa, ainda, reduzida difusão.

O tema em debate gira em torno da questão de saber como é que se geram consensos na ciência económica suscetíveis de proporcionar as condições adequadas para o avanço do conhecimento em certas áreas da economia. Através da introdução no debate do seu conceito, não fácil de explicar, de “Mathiness”, Romer centra-se no apaixonante mundo de discutir se o progresso científico na explicação dos fenómenos da inovação e da criação de ideias com potencial geração de valor económico deve ser modelizado em regime de concorrência perfeita (price-takers) ou, pelo contrário, como o interpelante Romer sustenta em ambiente de concorrência monopolista (price-makers).

O debate é virtuoso porque desenterra velhas polémicas da economia, que vêm desde os fins dos anos 40 (Stigler, 1948) e meados de 50 (Milton Friedman, 1953 com o clássico Methodology of Positive Economics), ambos entendidos como momentos decisivos no cortar de asas aos economistas que cedo perceberam as virtualidades da modelização da concorrência monopolista para entender a economia real e sobretudo fundamentar uma intervenção de política pública coerente. Como já aqui foi referido, Romer considera que só a ciência económica que utiliza o rigor matemático pode aspirar a gerar consensos que façam avançar o conhecimento, mas é violentamente crítico da utilização da matemática que não permite o estabelecimento de correspondências claras entre os conceitos matemáticos e as categorias observáveis da economia real. Podemos considerar esta posição atrofiadora do debate económico, porque deixa de fora a chamada teoria apreciativa, baseada em outras origens de rigor lógico e analítico que não apenas a linguagem matemática. Mas a sua investida contra a Mathiness, e os alvos dessa investida não são arraia miúda, mas antes tubarões da reprodução do pensamento económico em ambientes de concorrência, pode ser bem de maior alcance do que a polarização entre teoria apreciativa e teoria formal.

Recentemente, em resposta a uma réplica, como sempre inteligente de Simon Wren-Lewis, que diagnosticava um mal-estar na economia que transcenderia a a existência de modelos individuais mal concebidos, Romer vem situar o problema não no domínio estritamente metodológico, mas antes surpreendentemente no universo das normas pelas quais se deve reger o debate científico. Vale a pena recordar aqui o conjunto de normas que a comunidade científica deveria aceitar para que o debate possa contribuir para o progresso científico e que assegure um equilíbrio reputacional estimulante da confiança e da retribuição da procura da verdade. As normas são as seguintes, citando:

“a) Confiamos que o que cada interveniente apresenta no debate é um registo fiel do que ele ou ela pensam ser verdadeiro;
b) Todos reconhecemos que pessoas razoáveis podem divergir e que ninguém tem acesso privilegiado à verdade;
c) Temos em devida conta os argumentos de quem discorda de nós;
d) Estamos prontos para admitir que outros possam estar certos onde cada um de nós pode estar errado;
e) Nas nossas discussões, argumentos que são reconhecidos por uma clara pluralidade de membros da comunidade como sendo os que são melhor suportados pela lógica e pela evidência são os que devem ser provisoriamente aceites como verdadeiros;
f) Julgando o que é que representa uma “pluralidade clara”, atribuímos maior ponderação às pessoas com mais elevado estatuto na comunidade e que são reconhecidas como tendo uma maior expertise sobre o assunto;
g) Revemos o estatuto dos membros da nossa comunidade na base do seu contributo para o progresso de uma compreensão mais clara do que é verdadeiro, e não com base numa “inabalável convicção” ou na “lealdade para com o grupo”;
h) Rejeitamos ou excluímos da comunidade alguém que revela que não está disposto a comprometer-se com estes princípios”.

A defesa deste universo de normas levará certamente água no bico e, mantendo-se fiel à sua defesa da matemática, propõe um conjunto de questões para tentar desbloquear o debate concorrência perfeita versus concorrência monopolista como o ambiente pertinente para modelizar a compreensão dos processos de inovação:

1.     “Os argumentos matemáticos específicos estão logicamente corretos?
2.     As palavras que o autor utiliza para descrever um resultado matemático estão em conformidade com o que ele evidencia?
3.     Está o autor a apresentar uma palavra ou frase cujo significado é diametralmente oposto ao que a maioria dos leitores irá assumir?
4.      O autor invoca a defesa “Humpty-Dumpty” (Alice de Lewis Carrol) de que uma determinada afirmação é verdadeira porque “uso esta palavra para significar alguma coisa diferente do que a maioria das pessoas pensa que significa”.

Romer atira-se sobretudo ao positivismo económico (Friedman e companhia) que precocemente erradicou a concorrência monopolista do mainstream económico:

Premissa maior: Melhores teorias assentam em premissas mais irrealistas;
Premissa menor: A concorrência perfeita assenta em premissas que são mais irrealistas do que as da concorrência monopolista.
Conclusão: A concorrência perfeita é a melhor teoria

E ainda que não o assuma totalmente, Romer acaba por ser conduzido aos problemas do poder no interior das comunidades científicas, citando:

Ainda acredito que do lado do mapa na relação entre mapa e terreno, uma pessoa que trabalhe sozinha pode provar de forma logicamente correta um teorema matemático. Mas acabei por acreditar que o único conhecimento válido acerca do terreno resulta de um consenso de grupo. Os indivíduos humanos não são suficientemente auto cuidadosos para filtrar os seus próprios enviesamentos.
Se os cães tivessem diferentes tipos de cérebros, poderiam entender cálculo e a dinâmica Newtoniana. Se os humanos tivessem diferentes tipos de cérebros, poderia ser que tivessem perceções do mundo que não fossem enviesadas. Mas temos de trabalhar com o que temos.
Eu desejaria que não fosse necessário dizê-lo mas é: o tipo de consenso de grupo que um culto gera não é melhor do que a avaliação do líder reverenciado. O que a verdadeira ciência requer é um consenso que seja construído entre pessoas que saibam pensar independentemente e que não tenham medo de serem atacados pelo simples facto de discordarem dos mais velhos.
Ainda amo a beleza da matemática, mas perdi a arrogância da juventude, a confiança em que uma pessoa trabalhando sozinha possa descobrir o verdadeiro conhecimento sobre o terreno.”

Embora não me reveja totalmente na defesa da matemática como fator de consenso entre os economistas, simplesmente pelo facto de não ter competência matemática para poder assumir esse estatuto, acho que estes princípios, sobretudo este último da defesa do pensamento independente nas Universidades e nas comunidades científicas, deveria constar dos manuais de funcionamento e de compromisso individual e coletivo.

Interrogo-me sobre o que pode estar na origem desta ofensiva de Romer no debate económico e sobretudo do ataque ao mainstream da concorrência perfeita. Mas o debate ainda começou!

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