A carta e a macroeconomia
Agora que os derrotados choram leite derramado e o vencedor Cameron se
prepara para as novas clivagens que vão emergir no interior dos Conservadores,
com a promessa de referendo a incomodar sobretudo as hostes do sistema
financeiro londrino, é altura de fechar neste blogue a série de posts sobre as surpreendentes (pelos
resultados) eleições britânicas, com referência cirúrgica a dois fatores que
terão pesado na decisão dos eleitores britânicos.
A carta! Mas que raio de carta se trata? A imagem que abre este post mostra David Cameron a brandir a “carta”
como se um grande argumento se tratasse para justificar o voto na continuidade
conservadora. Ora, a carta é mesmo uma carta e foi redigida em tempo de
passagem de testemunho de trabalhistas a conservadores pelo antigo ministro do
Tesouro do governo Labour Liam Byrne que por acaso até foi eleito nesta eleição,
reforçando a sua votação. A missiva de que o ex-ministro hoje tanto se arrepende,
endereçada ao seu sucessor Lib Dem David Laws, dizia que receava que não
houvesse dinheiro nos cofres, desejando felicidades ao seu sucessor. Cameron usou
este estranho presente até à exaustão para mostrar que os trabalhistas
governaram sob o signo do descontrolo e do desbaratar da despesa, sobretudo
para justificar a sua agressiva consolidação das contas públicas. Não lembraria
ao diabo este presente trabalhista e recomendaria por cá alguma atenção ao
argumento que certamente Maria Luís Albuquerque vai acionar com a sua constatação
de que os cofres estão cheios. Isto se Passos continuar a utilizar as eleições
britânicas em proveito próprio.
O outro fator em que gostaria de me fixar é de âmbito macroeconómico. Trata-se
de discutir se o tipo de austeridade a que os britânicos foram sujeitos sem
justificação racional que não seja a de os Conservadores aproveitarem a
embalagem para a consolidação fiscal para impor o desmantelamento de alguns
serviços públicos que pretendiam privatizar ou reduzir a marca pública de modo
substancial foi ou não sentida pelos britânicos. Aparentemente não o terá sido,
ou pelo menos terá sido compreendida, extrapolando a partir dos resultados
eleitorais. David Andolfatto tem uma excelente análise sobre esta matéria.
Que a austeridade britânica impediu a economia de crescer tanto quanto
poderia ter crescido nas condições de enquadramento favorável de que dispunha
parece não haver dúvida. O gráfico abaixo mostra bem como o produto real britânico
poderia ter crescido de modo diferente se o rumo fosse outro. E em matéria de
comportamento do rendimento per capita,
comparativamente com os EUA, o peso da austeridade é também manifesto. E a
pergunta é inevitável. Foi o Labour e os economistas e imprensa que o apoiou
incapaz de explicar este efeito enviesado da política macroeconómica britânica?
Foram simplesmente os eleitores insensíveis?
David Andolfatto mostra que estranhamente o efeito da austeridade sobre o
produto não foi acompanhado de efeitos similares sobre o mercado de trabalho. E
seleciona para isso algumas variáveis (ver gráficos seguintes sobre a taxa de
desemprego, o rácio emprego/população e a taxa de participação da força de
trabalho) que evidenciam que o confronto com a economia americana é bem mais
favorável do que o observado em termos de produto. É de facto uma sugestiva análise
e já aqui noutra oportunidade chamei a atenção para algo que pode explicar este
comportamento mais favorável do mercado de trabalho no Reino Unido. A
justificação chama-se produtividade. Esta variável corre o risco de constituir
uma fragilidade futura da economia britânica, mas funcionou neste período como
uma válvula de segurança, impedindo que a austeridade tivesse efeitos no
produto e também no emprego e no desemprego. Com este contexto, compreende-se
melhor a reação eleitoral de quinta-feira passada, mas em termos dinâmicos o
problema subsiste, a economia britânica não será competitiva com tão frágil
comportamento da produtividade.
Simon Wren-Lewis, um adversário confesso dos conservadores, afirmava sexta-
feira passada que Cameron era um sortudo. Será provavelmente uma injusta
classificação para os dotes políticos de Cameron, mas que houve um conjunto
muito favorável de circunstâncias, as que referi e o próprio nacionalismo escocês,
dificilmente repetíveis noutra conjuntura eleitoral, parece também não haver dúvida.
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