Num blogue dedicado à complexa fronteira e às não menos complexas interações
entre as esferas do público e do privado, é natural que no âmbito das nossas
convicções concentremos a nossa atenção e fervores em personalidades que nos
garantam a defesa do interesse público e a sua preservação face a tentações de
menos claras intromissões e cumplicidades com o privado, pelo menos com o
privado incapaz de compreender a relevância do cálculo social.
Quando a essa procura natural juntamos um país como o Chile, fonte de todas
as promessas, derrotas e atrocidades, mas também esperança de novos rumos,
compreende-se de quem estou a falar. De Michelle Bachelet, claro, mulher
presidente do Chile, democrata e socialista que já assumiu o poder, o perdeu e
recuperou, mas com um passado de combatente e sobretudo uma esperança de modernidade
democrática, num continente estruturalmente atravessado por práticas de corrupção
e coisas bem mais graves.
Rafael Gumucho tem no El País de Domingo passado uma peça de grande
proximidade para compreender esta mulher, mulher separada, médica pediatra, com
passado de vítima da ditadura de Pinochet e uma grande capacidade de trabalhar
para o seu semelhante e de se identificar com os seus problemas mais profundos.
Esta mulher emergia serena entre as grandes lideranças da América Latina, senão
quando é apanhada nos negócios menos claros do seu filho Sebastián Dávalos e
sua nora Natalia Compagnon, com uma reação atabalhoada e sobretudo muito lenta
que lhe tem valido quebras significativas da sua popularidade natural.
Mais do que a comparação entre um mandato em que Michelle acabou com 86% de
adesão e popularidade e um outro, o atual, em que poderá acabar mal e de
candeias às avessas com um povo que com ela se identificava, a questão está nos
malefícios do poder que mais do que nunca parece ameaçar o mundo dos que se
perfilavam como os grandes defensores da esfera pública e da preservação dos
seus interesses. A carne parece fraca, senão a dos próprios, mas também a dos
filhos. Que tempos estes!
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