(Desculpem, um pouco longo e um pouco técnico)
O universo da macroeconomia anda agitado. O termo “dismal science” (ciência sombria) tem sido
invocado por diferentes economistas para caracterizar o estado de insatisfação
provocado pela inadequação do paradigma macroeconómico vigente ao contexto
macroeconómico que emergiu depois de 2007-2008 (a insatisfação é estendida por
alguns à própria compreensão do processo que levou à crise de 2007-2008) e
sobretudo ao período que se lhe seguiu. Há uma certa regularidade histórica na
sucessão dos paradigmas macroeconómicos. A teoria keynesiana afirma-se em função
do cataclisma de 1929-1930 em rebeldia aberta contra a macroeconomia saída da época
dourada dos fins do século XIX. A crise dos anos 70 haveria de abalar os princípios
keynesianos, não a destrui-los como muito boa gente pensante o admitiu, e o período
de equilíbrio e moderação que presumidamente vigorou até à sucessão de crises a
partir dos fins dos anos 90, incluindo a grande estagnação japonesa, criou a
ideia de que a macroeconomia poderia subsumir-se na teoria do crescimento económico,
porque finalmente os economistas e a política monetária tinham domado o ciclo
económico, recessões suaves e expansões prolongadas.
O estado de coisas do período de moderação parece que se
transformou em estado de sítio. Bradford DeLong tem uma boa síntese do estado de sítio:
“Toda esta estrutura está agora em
ruínas. A nossa social-democrata distribuição de rendimento está a ser destruída
de uma maneira terrível pela segunda era dourada. O nosso governo, pelo menos
aqui nos EUA, está carenciado de financiamento adequado para todos os tipos de
infraestrutura desde a eleição de Ronald Reagan. A confiança na capacidade das
nossas instituições gerar adequadamente a procura agregada está em frangalhos
pelas razões demonstradas de incompetência e de falha em larga escala. O nosso
sistema político está neste momento enviesado em direção à austeridade e a um
elevado potencial de trabalho não utilizado e não em direção à expansão e à
inflação. O nosso sistema político está hoje distanciado do desejável modelo de
pedir emprestado e investir. E o prémio-retorno de investimento em equity está
ao nível do que era antes de 2007-2008 e temos também uma enorme e custosa
hipertrofia do sistema financeiro que, o melhor que podemos dizer, é que não
está a proporcionar um valor social à medida da sua dimensão alargada”.
Esta visão do estado de sítio parece tremenda, mas DeLong
é um liberal democrata moderado e não está a exagerar.
A questão que se coloca é como os macroeconomistas estão
a reagir a esta transformação do estado de acalmia e moderação em estado de sítio.
Como tenho assinalado neste humilde espaço, várias conferências de âmbito
mundial, mas com largo predomínio da academia e do sistema financeiro
americano, têm-se sucedido na procura de respostas quanto às implicações que o
estado de sítio estará a provocar. Por estranho que pareça e obra do facto de
Olivier Blanchard ser economista-chefe do FMI, esta instituição tem assumido a
dianteira dessa reflexão sobre os rumos da macroeconomia e da política
macroeconómica. Sabemos, e a história do pensamento económico prova-o com
clareza, que os paradigmas macroeconómicos exigem uma situação de normalidade
de referência para se desenvolverem, uma normalidade que regra geral é descrita
por um conjunto de factos estilizados ou regularidades em torno dos quais as
economias concretas oscilam. Ora, é claro que existe hoje uma nova normalidade
e vários economistas têm-se multiplicado em tentativas credíveis para a
caracterizar. Mas que reações temos tido e que perspetivas poderemos a partir
delas antever para o exercício da política macroeconómica nos próximos tempos?
Uma linha de pensamento que poderemos classificar de mais
defensiva defende que as teorias e modelos macroeconómicos correntes (desculpem
a tecnicidade, mas representadas no plano dos manuais pelo modelo IS-LM-AS-AD e
no plano dos modelos dos bancos centrais DSGE – Dynamic Stochastic General Equilibrium,
vulgo designados por modelos neokeynesianos) não podem ser acusados de
inadequação. É antes o enviesamento da política macroeconómica, não atribuindo à
política fiscal (acomodável por tais modelos) e portanto a incompetência política
e de bancos centrais que explica a não acomodação da crise por parte do
paradigma macroeconómico instalado. Esta parte da discussão está bem
representada em economistas como Paul Krugman e Simon Wren-Lewis, que se têm esforçado
como no quadro dos referenciais ensinados aos alunos de macroeconomia, e
recordando que o pensamento keynesiano não está morto mas vivo, é possível
explicar o sucedido e fundamentar um outro tipo de política macroeconómica.
Do outro lado da barricada, têm emergido no debate posições
que apontam para uma completa revisão dos modelos macroeconómicos, e entramos
aqui em matéria bem complexa desadequada para o âmbito deste blogue. RogerFarmer, economista neokeynesiano da UCLA, tem-se destacado nessa onda, sobretudo
por via de reclamar uma atenção mais esforçada dos economistas para com modelos
não lineares, o que a concretizar-se representaria uma profunda revolução com
tremendas implicações no ensino da macroeconomia. Surpreendentemente, uma clara
adesão a esta corrente veio não propriamente da academia, mas de um homem da
consultadoria e dos mercados financeiros, Wolfgang Mϋnchau:
“Por agora, os
tradicionalistas ainda dominam. Tentaram contornar as guerras ideológicas do século
XX avançando para uma nova geração de modelos económicos que eram tecnicamente complexos
no sentido que lhe dava a matemática do século XIX. Os modelos integravam o que
os economistas aprenderam acerca vários mercados com o conhecimento adquirido
sobre a economia como um todo. Os chamados modelos DSGE (Dynamic Stochastic General
Equilibrium) foram concebidos para lidar com perturbações imprevisíveis como os
choques tecnológicos. Não são porém apropriados para lidar com choques como os
que vivemos neste momento – crise financeira, não pagamento de dívidas e deflação.”
A intuição de Mϋnchau não é para deitar fora, já que me
parece estar ele certo quando adverte para a incapacidade de modelos organizados
em torno da ideia de que as economias respondem a um choque imprevisível regressando
a um horizonte de equilíbrio de integrarem contextos de desequilíbrio
estrutural como o são, por exemplo a estagnação secular de Lawrence Summers ou
o excesso estrutural de poupança sobre o investimento de Ben Bernanke.
Estou com Bradford DeLong quando ele intui que algo vai
acontecer para responder ao “new normal” com que a macroeconomia tem de se
haver. Pode não ser nada de espetacular e antes resultar de uma adaptação
incremental do pensamento hoje existente, provocado pelos desafiadores como
Summers. Parece que estamos longe da convicção de que a política monetária e a
sã independência dos bancos centrais tudo resolveria. A política fiscal está aí
para nos exigir a presença de governação credível e por muito que custe aos
novos clássicos e fundamentalistas da eficiência dos mercados vamos continuar a
ler Keynes e a discutir o pioneirismo das suas conclusões. O dogma da livre
circulação dos capitais está também desacreditado e mais tarde ou mais cedo
isso vai emergir com clareza na situação grega onde esse princípio está simplesmente
a cavar o inevitável.
Há dias, chegou-me às mãos um novo manual de Macroeconomia
que vai na linha da adaptação incremental: Macroeconomics –
Institutions, Instability and Financial System de Wendy Carlin e
David Soskice (Oxford University Press). Aqui está uma tentativa de introduzir
no ensino graduado e pós-graduado da macroeconomia uma maior atenção para com o
sistema financeiro, desafiando os professores a um mergulho mais profundo nesta
matéria. O problema é que para alguns agentes do ensino da macroeconomia isso
equivalerá a uma viagem ao mais profundo escuro da sua ignorância e exigirá nos
cursos de macroeconomia uma outra abertura à presença de testemunhos e experiências
da vida financeira concreta. Mas estou otimista. É seguramente com alguma
nostalgia que recordo as minhas aulas de macroeconomia onde poderia aplicar
toda esta vasta panóplia de novas ideias. Mas a vida continua e por ironia do destino
o meu filho Hugo terá no próximo ano, em Aveiro, uma cadeira de introdução à macroeconomia. A
acumulação de capital humano é isto mesmo, essencialmente uma matéria familiar
e intergeracional.
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