domingo, 3 de maio de 2015

OS CAMINHOS DA DESIGUALDADE




Já alguém disse que a desigualdade será o tema chave das economias de mercado no século XXI e tendo a assinar por baixo. E vai sê-lo constituindo o foco da divergência política, entre os que continuam a defender muitas vezes hipocritamente que o livre funcionamento do mercado é capaz de distribuir equilibradamente os benefícios do crescimento (ou os custos da penosidade estagnacionista e recessiva) e os que pelo contrário consideram que é necessário substituir-se ou corrigir essas forças de mercado para assegurar uma desigualdade social e politicamente tolerável. Neste último grupo, haverá que distinguir entre os que se opõem à desigualdade como algo de socialmente contranatura e os que consideram que a economia de mercado não funciona com padrões de desigualdade desproporcionados, autodestruindo-se.

2015 será seguramente um ano florescente no centramento económico e político do tema da desigualdade. Ainda se vivem os ecos do enorme impacto produzido pela obra de Thomas Piketty, mais impactante a obra do que os aparecimentos públicos do economista francês. Mas já estão publicadas duas outras obras marcantes na abordagem do tema, disputando à sua maneira e por vias diferentes o foco do Capital de Piketty. A uma já eu me referi neste blogue e estou em plena leitura: Inequality – what can be done? (Harvard University Press), de um economista em que todos bebem a inspiração para abordar estes temas, Anthony Atkinson, aliás largamente colaborante com Piketty no que respeita às evidências do Reino Unido. E já outra obra, também de um dos meus economistas de referência nestas coisas da desigualdade, François Bourguignon, ex-economista chefe do Banco Mundial (mais um francês internacionalizado como Piketty), emerge para marcar o debate das ideias e traçar pistas para a intervenção política, a qual não pode queixar-se de falta de fundamentos para exercer a sua liberdade de opções: The Globalization of Inequality (Princeton University Press). Não será por acaso que duas prestigiadas editoras americanas, ligadas às suas universidades, protagonizem neste caso o panorama editorial.


Martin Wolf dedicou no Financial Times um excelente artigo às duas obras e isso constitui por si só um argumento a favor da minha tese de que o tema da desigualdade vai marcar o debate político nos próximos tempos e espero que o programa de governação do PS ataque esta questão de modo frontal, pois aqui tem uma matéria de diferenciação face à hipocrisia da maioria.
Mas se Piketty, Atkinson, Bourguignon e também Stiglitz, Saez e Zucman tenderão a ocupar o centro das referências, não nos poderemos esquecer de outros economistas que há mais de duas décadas colocaram a desigualdade no centro das suas preocupações e investiram fortemente na procura das razões pelas quais o capitalismo começou a gerar mais intensamente a desigualdade. Aliás, uma das questões em debate é a de saber se o período em que o capitalismo foi distributivo (essencialmente os anos do pós 2ª Guerra Mundial não é antes um caso especial de uma normalidade não igualitária que se terá manifestado ao longo dos tempos. Robert Reich é um desses economistas e assina recentemente no Prospect um excelente artigo no qual regressa a este tema dos caminhos, ou na sua expressão, das raízes da desigualdade.

Até ao momento a explicação mais consensualmente admitida apontava para o efeito conjugado da globalização e da tecnologia. A destruição de empregos induzida em certas economias pela possibilidade de produção a salários de miséria em contexto de oferta praticamente ilimitada de mão-de-obra noutras economias e a substituição de empregos de qualificações intermédias por instrumentos de automação (polarização de empregos) têm dominado a identificação dos fatores e caminhos da desigualdade. A fazer fé nestes argumentos, a posição de inferioridade dos atingidos pela desigualdade não teria grandes saídas: lutar contra a globalização em contexto de sindicalização reduzida aos seus limites mínimos ou inexistente e tornar a tecnologia o inimigo principal são saídas que equivalem praticamente a muros intransponíveis. Na globalização, nem governo mundial nem internacionalização e cooperação do movimento sindical transformam em wishful thinking qualquer tentativa de uma globalização mais justa. Na tecnologia, não podemos esquecer que essa mesma tecnologia vai proporcionando oportunidades para outras qualificações e gerando emprego de substituição. Por outro lado, não podemos ignorar que a globalização não é um fenómeno recente e que só a polarização dos empregos parece historicamente datada em tempos mais recentes, não sendo hoje visível que ela se transforme em processo estrutural (ver as teses de David Autor por mim já comentadas neste blogue).

É neste contexto que tem sentido interpretar com atenção o que Robert Reich nos tem a dizer. Os efeitos da globalização e da tecnologia sobre a desigualdade não podem ser dissociados das relações de poder que condicionam o funcionamento das forças de mercado. Ignorar a questão do poder no jogo da barganha social é perigoso. O padrão extremamente desigual das remunerações do trabalho é um produto dessas relações de poder. Por exemplo, no Reino Unido tem aumentado o número de trabalhadores com tempo de trabalho mínimo zero, sujeitos à mais completa desregulação das relações de trabalho. José Pacheco Pereira tem razão em classificar a realidade de direita, ou seja a realidade atual é produto de uma profundamente desigual relação de forças e esse foi o papel decisivo do processo de ajustamento europeu das dívidas soberanas.

Em resumo, há certamente forças exteriores (a globalização e a tecnologia) que explicarão cambiantes da desigualdade crescente. Mas essas forças não atuam no vazio social. Necessitam de forças internas que as reproduzam e ampliem. E disso ocupam-se as relações de poder e nesse plano é de política que estamos a falar.


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