Já alguém disse que a desigualdade será o tema chave das
economias de mercado no século XXI e tendo a assinar por baixo. E vai sê-lo
constituindo o foco da divergência política, entre os que continuam a defender
muitas vezes hipocritamente que o livre funcionamento do mercado é capaz de distribuir
equilibradamente os benefícios do crescimento (ou os custos da penosidade
estagnacionista e recessiva) e os que pelo contrário consideram que é necessário
substituir-se ou corrigir essas forças de mercado para assegurar uma
desigualdade social e politicamente tolerável. Neste último grupo, haverá que
distinguir entre os que se opõem à desigualdade como algo de socialmente
contranatura e os que consideram que a economia de mercado não funciona com
padrões de desigualdade desproporcionados, autodestruindo-se.
2015 será seguramente um ano florescente no centramento
económico e político do tema da desigualdade. Ainda se vivem os ecos do enorme
impacto produzido pela obra de Thomas Piketty, mais impactante a obra do que os
aparecimentos públicos do economista francês. Mas já estão publicadas duas
outras obras marcantes na abordagem do tema, disputando à sua maneira e por
vias diferentes o foco do Capital de Piketty. A uma já eu me referi neste
blogue e estou em plena leitura: Inequality – what
can be done? (Harvard University Press),
de um economista em que todos bebem a inspiração para abordar estes
temas, Anthony Atkinson, aliás largamente colaborante com Piketty no que
respeita às evidências do Reino Unido. E já outra obra, também de um dos meus
economistas de referência nestas coisas da desigualdade, François Bourguignon,
ex-economista chefe do Banco Mundial (mais um francês internacionalizado como
Piketty), emerge para marcar o debate das ideias e traçar pistas para a
intervenção política, a qual não pode queixar-se de falta de fundamentos para
exercer a sua liberdade de opções: The Globalization
of Inequality (Princeton University Press).
Não será por acaso que duas prestigiadas editoras americanas, ligadas às suas
universidades, protagonizem neste caso o panorama editorial.
Martin Wolf dedicou no Financial Times um excelente
artigo às duas obras e isso constitui por si só um argumento a favor da minha
tese de que o tema da desigualdade vai marcar o debate político nos próximos tempos
e espero que o programa de governação do PS ataque esta questão de modo
frontal, pois aqui tem uma matéria de diferenciação face à hipocrisia da
maioria.
Mas se Piketty, Atkinson, Bourguignon e também Stiglitz, Saez
e Zucman tenderão a ocupar o centro das referências, não nos poderemos esquecer
de outros economistas que há mais de duas décadas colocaram a desigualdade no
centro das suas preocupações e investiram fortemente na procura das razões
pelas quais o capitalismo começou a gerar mais intensamente a desigualdade. Aliás,
uma das questões em debate é a de saber se o período em que o capitalismo foi
distributivo (essencialmente os anos do pós 2ª Guerra Mundial não é antes um
caso especial de uma normalidade não igualitária que se terá manifestado ao
longo dos tempos. Robert Reich é um desses economistas e assina recentemente no Prospect um excelente artigo no qual regressa a este tema dos
caminhos, ou na sua expressão, das raízes da desigualdade.
Até ao momento a explicação mais consensualmente admitida
apontava para o efeito conjugado da globalização e da tecnologia. A destruição
de empregos induzida em certas economias pela possibilidade de produção a salários
de miséria em contexto de oferta praticamente ilimitada de mão-de-obra noutras
economias e a substituição de empregos de qualificações intermédias por
instrumentos de automação (polarização de empregos) têm dominado a identificação
dos fatores e caminhos da desigualdade. A fazer fé nestes argumentos, a posição
de inferioridade dos atingidos pela desigualdade não teria grandes saídas:
lutar contra a globalização em contexto de sindicalização reduzida aos seus
limites mínimos ou inexistente e tornar a tecnologia o inimigo principal são saídas
que equivalem praticamente a muros intransponíveis. Na globalização, nem governo
mundial nem internacionalização e cooperação do movimento sindical transformam
em wishful thinking qualquer tentativa
de uma globalização mais justa. Na tecnologia, não podemos esquecer que essa
mesma tecnologia vai proporcionando oportunidades para outras qualificações e
gerando emprego de substituição. Por outro lado, não podemos ignorar que a
globalização não é um fenómeno recente e que só a polarização dos empregos
parece historicamente datada em tempos mais recentes, não sendo hoje visível
que ela se transforme em processo estrutural (ver as teses de David Autor por mim já comentadas neste blogue).
É neste contexto que tem sentido interpretar com atenção
o que Robert Reich nos tem a dizer. Os efeitos da globalização e da tecnologia
sobre a desigualdade não podem ser dissociados das relações de poder que
condicionam o funcionamento das forças de mercado. Ignorar a questão do poder
no jogo da barganha social é perigoso. O padrão extremamente desigual das
remunerações do trabalho é um produto dessas relações de poder. Por exemplo, no
Reino Unido tem aumentado o número de trabalhadores com tempo de trabalho mínimo
zero, sujeitos à mais completa desregulação das relações de trabalho. José Pacheco
Pereira tem razão em classificar a realidade de direita, ou seja a realidade
atual é produto de uma profundamente desigual relação de forças e esse foi o
papel decisivo do processo de ajustamento europeu das dívidas soberanas.
Em resumo, há certamente forças exteriores (a globalização
e a tecnologia) que explicarão cambiantes da desigualdade crescente. Mas essas
forças não atuam no vazio social. Necessitam de forças internas que as
reproduzam e ampliem. E disso ocupam-se as relações de poder e nesse plano é de
política que estamos a falar.
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