Continuo entre amigos, numa referência ao facto de hoje ter sido o dia em que um deles ― o biólogo Nuno Ferrand de Almeida, director do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio-InBio) da Universidade do Porto, criador da Galeria da Biodiversidade (que procura aliar a ciência e a arte na Casa associada a Sophia de Mello Breyner Andresen, onde se situa também o Jardim Botânico, e que é agora um pólo do Museu de História Natural e Ciência da Universidade do Porto) e vencedor em 2019 de uma candidatura conjunta com a Universidade de Montpellier (conhecida por Biopolis) a um dos grandes programas de financiamento da ciência europeia (o Teaming, obtendo o maior financiamento alguma vez atribuído a um centro de investigação português, no caso para investigação em biodiversidade e genética) ― foi condecorado pela embaixada de França (cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra) em reconhecimento da excelência do seu percurso académico e da sua determinação em “criar um pólo de investigação sobre biodiversidade de envergadura internacional” com central colaboração franco-portuguesa e redes de laboratórios (TwinLabs) em África. Uma distinção inteiramente merecida para um dos cientistas/investigadores mais notáveis com que privei, pelo seu conhecimento, pela sua fulgurância e pela sua energia, atributos a que soma uma dimensão cívica ímpar e qualidades pessoais inigualáveis.
sexta-feira, 30 de junho de 2023
VER E OUVIR O RUI
Um gosto enorme ter ido ontem ao final da tarde até à Casa das Artes para uma visita guiada à exposição “Poetas Mal Copiados”, uma seleção de obras do meu bom amigo Rui Aguiar organizada pela associação COARA a partir de um conjunto de obras recuperadas do espólio do artista (traduzindo o seu esforço “para se entender o ambiente artístico português dos últimos 50 anos” e “os diversos caminhos que a liberdade política do pós-25 de Abril permitiu”), nomeadamente o que designa por “más copias” de Poetas (Fernando Echevarría, Mário Cláudio, Mário Brochado Coelho, José Carlos Marques e Rita Moreira) com os quais teve ou tem tido relações de amizade e de colaboração artística. Estão expostos, em diversos suportes (pintura, imagens digitais, pequenos vídeos), trabalhos do início da atividade artística, dos anos 80 e outros mais recentes. A anteceder, uma interessante troca de palavras e reflexões entre Rui Aguiar, Laura Castro, Jorge Velhote e Rita Moreira (lendo poemas de Marta Seixas) ― com destaque para algum compreensível inconformismo perante a fase mais recente de “rendição ao vídeo” (“eu sou a Rosa Ramalho dos vídeos, reduzido ao meu cantinho perante a enorme sofisticação do digital dos dias de hoje”) ― e para a projeção de uns belíssimos “Mondrianescos” ao som de Mozart por Antoine Hervé. A caminho dos 80, o Rui permanece o mesmo de sempre na força da sua personalidade e convicções, na sua incomparável generosidade e na discrição sincera com que expressa os seus afetos.
A TRINCHEIRA ANTI-IMIGRAÇÃO
(Em termos regularmente anunciados, o Conselho Europeu destes dias mostra à evidência como a questão imigratória da Europa constitui o principal fator de divisão na União, da qual a questão de saber se a decisão nesta matéria deve ser tomada por unanimidade ou por maioria qualificada é a menos importante. Embora as notícias nos esclareçam que a Polónia e a Hungria são os protagonistas principais do escarcel de reações, a Itália navega também no mesmo barco, apenas com a subtil de diferença da primeira-Ministra italiana Meloni ser mais fina e elegante na dissimulação do seu também padrão anti-imigração. A imagem que abre este post que reproduz uma fotografia da Associated Press documenta bem esse triângulo de trincheira e muito sinceramente não vejo maneira das instituições da União desatarem este nó, embora saibamos que os Tratados fixam para esta matéria a maioria qualificada como critério de decisão. A tese da unanimidade não é mais do que uma tentativa desesperada de forçar o poder negocial daquela trincheira de países, cada vez mais alicerçados num nacionalismo xenófobo.)
O que define o espaço para a posição comum dos três países assinalados, Itália, Hungria e Polónia, é o facto das forças políticas que ocupam o poder nesses países terem aí chegado com uma inequívoca afirmação e defesa dos valores de rejeição da imigração, acobertada num nacionalismo agudo e profundamente reacionário. Sabemos ainda que a Polónia está a braços com eleições próximas e com a formação de uma ampla frente de oposição eleitoral que colocará o Partido da Justiça e Liberdade numa grande pressão. Habilmente, o governo conservador polaco tem utilizado o seu capital logístico na ajuda à Ucrânia para dissimular as suas teses de rejeição da imigração. Mas mesmo nesse contexto de aparente dissimulação, o nacionalismo agudo reemergiu quando os polacos rejeitaram aderir à importação de cereais ucranianos contra a sua própria produção e a sua base rural conservadora de apoio eleitoral.
Victor Orbán nunca esqueceu a dimensão da rejeição xenófoba da imigração e nestes momentos de decisão do Conselho Europeu tem sempre reafirmado essa posição, em complexas negociações em que a delicadeza do tema leva a União Europeia e suas instituições a ceder ao infrator.
Dos três países entrincheirados, a primeira-Ministra italiana Meloni é talvez a mais hábil, expondo-se menos nestes momentos de decisão do Conselho, mas atuando no plano da bilateralidade. São conhecidas reuniões de Macron e Pedro Sánchez com Meloni, o que sugere uma posição não de confronto direto, mas antes de tentar minar internamente acordos.
Sabemos que o projeto político europeu é uma mescla complexa de compromissos. Quanto a questão imigratória ocupa o lugar central das grandes decisões, a linha de pensamento dominante ainda consegue orientar os resultados para algo que salve a face do humanismo europeu. Mas o problema é que, por vezes, o tema imigratório faz parte de acordos complexos mais amplos e em que a diversidade de compromissos possíveis pode colocar o progressismo da abordagem à imigração em posição desfavorável. E, tragicamente, a opinião pública europeia parecer estar mais interessada em seguir o fim macabro e implosivo do submersível TITAN do que propriamente pensar de mente aberta no horror do mais recente naufrágio no Mediterrâneo.
A trincheira anti-imigratória está hoje limitada aos três amigos da fotografia. Mas estão na calha movimentações políticas e eleitorais que correm o risco de transformar essa trincheira numa autêntica cratera no coração das instituições europeias.
A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM DEBATE SÉRIO NO PORTO
“Isto é que é conversa académica!”, sintetizou alguém o sentido da tarde de hoje no Auditório da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). E assim foi, com efeito. Numa organização da Comissão de Ética (José Francisco Meirinhos) e da Direção da FMUP (Altamiro da Costa Pereira), ali se juntaram diversos professores de várias áreas de especialidade e de diferentes unidades orgânicas da Universidade para discutir a candente questão da Inteligência Artificial e o seu potencial impacto no Ensino Superior (“ChatGPT, Que Modelos de Aprendizagem para o Ensino Superior?”). O seminário foi marcado pela excelente qualidade dos contributos presentes, sobretudo no primeiro painel em que seis personalidades (Mário Fernandes da Geografia, Ricardo Correia da Medicina, Diniz Cayolla Ribeiro de Antropologia e Artes Visuais, Diana Urbano da Engenharia, Rui Sousa Silva da Linguística e Emília Dias Costa do Design) trouxeram brilhantemente a conhecimento a sua recente experiência exploratória na matéria (incluindo alguns momentos deliciosos) e as suas esperanças e angústias quanto à evolução da mesma e às possibilidades próprias de a aproveitar em favor de modelos pedagógicos disruptivos e mais eficazes. Também constaram incursões pelas decisivas dimensões éticas, jurídicas e regulatórias, tudo num fascinante quadro misto de pasmo, estranheza, receio e sedução. Mesmo tendo ficado claro que, apesar de tudo, o pior talvez ainda possa acabar por vir dos homens, ou seja, da inteligência natural, o que de essencial ficou no ar foi a necessidade de aprofundamentos adicionais em relação ao tão pouco que ainda se conhece de uma ferramenta que todos assumiram como incontornável mas não isenta de fragilidades e perigos (veja-se abaixo a foto do Papa Francisco vestido com um kispo branco da marca Balenciaga, afinal o primeiro evento verdadeiramente viral de desinformação a partir de uma plataforma de Inteligência Artificial, segundo a “Time”). E também, muito decisivamente, a importância de tal ocorrer em profícuos contextos de intercâmbio e interdisciplinaridade.
quinta-feira, 29 de junho de 2023
ESCREVE QUEM SABE
(João Costa Pinto pertence a uma geração de economistas anterior à minha, que tem mantido desde os velhos tempos em que se destacou intelectualmente na Faculdade de Economia do Porto a mesma constante de sobriedade, profissionalismo, sensatez e sentido crítico das coisas. Numa linha permanente de independência face a quaisquer grupos de pressão, a sua experiência da banca portuguesa é um exemplo notável de persistência de valores de rigor e de contributo para a literacia financeira dos Portugueses. O seu artigo no Público sobre a questão potencialmente incendiária das taxas de remuneração de depósitos mantidas pelos bancos abaixo dos valores sugeridos e antecipados na política monetária restritiva atualmente seguida e ainda ontem reafirmada pelos bancos centrais, incluindo o BCE, é em meu entender dos contributos mais lúcidos para uma discussão desapaixonada e sobretudo fundamentada da questão acima indicada. Curiosamente, o artigo de JCP é publicado simultaneamente com a divulgação de uma afirmação pública do Presidente da Assembleia da República sobre a mesma matéria que não contribui nada para fortalecer a literacia financeira dos Portugueses.)
A perspetiva que JCP nos oferece é muito simples, bastante clara, mas não deixa de ser por isso um dos contributos mais positivos e de maior alcance que registei na comunicação social sobre esta matéria.
O economista começa por relembrar que a importância do sistema bancário no sistema financeiro europeu não tem comparação possível com o que se regista no mundo anglo-saxónico. Neste último, a intermediação financeira atingiu níveis de sofisticação e diversificação que tende a reduzir o papel do sistema bancário na intermediação exercida pelo sistema financeiro. Esta constatação, à qual podemos associar níveis de agilidade e flexibilidade que, regra geral, o sistema bancário não oferece, tem também a contrapartida da sua ação tender a complicar os mecanismos de transmissão da política monetária, quando os bancos centrais aumentam as taxas de juro de referência.
Quer isto significar que, na realidade europeia, tal como o sublinha JCP, os bancos não se limitam a assumir a função de “coluna vertebral” do sistema financeiro, sendo também o principal canal de transmissão da política monetária. Mas convém não ignorar que, regra geral, os bancos são entidades privadas, com as suas próprias estratégias de mercado e que os executores da política monetária, os bancos centrais, não dispõem de mecanismos de vinculação autoritária que lhes permita obrigar os bancos a assumir o comportamento desejado. A política monetária faz-se de instrumentos que são essencialmente incentivos para modelar as decisões dos bancos no sentido desejado, neste caso atual procurar arrefecer a economia e assim ir retirando combustível à propagação da inflação. Mas como o referi em post anterior, esse principal mecanismo de transmissão da política monetária enfrenta constrangimentos e limitações importantes, um dos quais consiste em admitir que os bancos reagem aos incentivos desenhados do modo pretendido.
JCP destaca um elemento de análise que tenho visto muito deficientemente assumido no debate público. As condições atuais prevalecentes no sistema bancário europeu, e o português não é exceção a esse padrão, são muito pouco favoráveis à concorrência interbancária pela procura de depósitos. O período anterior da política monetária inundou o mercado de liquidez, num contexto estranho, referido no meu último post e inspirado nos contributos de Richard C. Koo, em que a escassez de pedidos de novo crédito era notória. Assim sendo, neste contexto desfavorável à concorrência por depósitos, a lógica de mercado determinará que a banca tenderá a conservar, até à última, os diferenciais de taxas de remuneração de depósitos. Além disso, discutiu-se pouco em Portugal as implicações suscitadas nos balanços dos bancos pela subida das taxas de juro, reduzindo o valor de alguns ativos bancários.
JCP é particularmente lúcido quando coloca o dedo na ferida principal: “Quando tal não acontece e os bancos aumentam menos a remuneração dos depósitos, enfraquecem o impacto sobre a procura, enquanto alargam a sua margem financeira. Objetivamente, absorvem no seu balanço uma parte do efeito macroeconómico pretendido pelo BCE, reduzindo a eficácia global da política monetária”. E diria eu, com esse comportamento, compensam em parte as perturbações de balanço induzidas pela subida das taxas de juro.
Mas JCP vai mais longe e identifica o que em seu entender é o padrão dominante de alocação do crédito bancário: “procuraram os segmentos do mercado de crédito com menor custo de capital e em que, tradicionalmente, desenvolveram modelos mais eficazes de avaliação e controle do risco”, ou seja, com relevo do crédito ao consumo, turismo, habitação e construção.
E é nesta deriva que entroncaria a afirmação aparentemente descontextualizada de Augusto Santos Silva, segundo a qual a banca arriscaria pouco. Convém separar as águas e recordar que exigir à banca comportamentos de avaliação de risco de crédito típicas do capital de risco e de outras formas de financiamento da inovação constituirá sempre um erro trágico. A banca não tem decididamente uma cultura de crédito ajustada ao risco inovação e à disrupção de base tecnológica. A política pública já tentou ir por aí para contornar a pasmaceira do nosso mercado de capital de risco mas deu-se mal.
Mas o que me parece relevante retirar da análise crítica de JCP é a crítica inequívoca ao apelo de boas intenções, protagonizado por exemplo pelo incorrigível Marcelo, pedindo aos bancos que se comportem como protetores da poupança dos portugueses e aumentem lá um bocadinho as remunerações dos depósitos bancários.
É de efetividade de mecanismos de transmissão da política monetária que estamos a falar e não de votos de uma qualquer irmandade com fortes preocupações sociais. E são, por isso, os senhores da política monetária que a deverão exercer procurando criar condições de regulação que determinem o comportamento desejado dos bancos. Reconhecer os problemas de transmissão dos efeitos da política monetária não significa apenas aliviar a consciência de “falcões e pombas” no desenho da política monetária. Atuem, pelo contrário, na criação de condições para mitigar essas dificuldades de transmissão. É isso que se exige a um regulador e não apenas a subserviência a um conjunto de ideias feitas.
FEIJÓO E A SUA CIRCUNSTÂNCIA
Um breve apontamento para não deixar sem resposta uma referência do meu amigo do lado ao facto de a relação institucional próxima que desenvolvi com Alberto Feijóo me permitir um melhor conhecimento do que poderá estar presentemente a passar-se por terras de Espanha. Reconhecendo a dita proximidade, não assumo que dela possa decorrer uma especial capacidade de leitura quanto ao tema do momento, a saber, o do tipo e grau de relacionamento que o PP deverá estabelecer com o Vox no pressuposto de que não logre obter a 23 de julho uma maioria absoluta para governar ― ou seja, até onde deverão os “populares” liderados por Feijóo ir em termos de cedência às exigências de Abascal e de uma extrema-direita ideologicamente bastante radical e negocialmente muito agressiva? De facto, a questão é velha e quase já virou clássica, sendo mais uma vez claro que, perante a sua opção de dar um passo arriscado no sentido de disputar o poder nacional, o ex-líder galego não iria agir diferentemente de muitos antecessores ou contemporâneos perante realidades semelhantes (ainda que marcadas por contextos distintos); a essência do assunto não é, portanto, de ordem pessoal (maior coerência de princípios, logo maior intransigência, por parte de uma melhor pessoa, digamos assim).
Os factos aí estão para o demonstrar, vejam-se como as pressões sobre Maria Guardiola na Extremadura já a levaram a recuar no seu proclamado afastamento em relação ao Vox; releva ademais um quadro em que Feijóo tem à perna uma companheira de partido (Isabel Díaz Ayuso) que nunca deixou de fazer constar (como aqui se sublinhou em devido tempo) quanto iria fazer uso do seu espaço próprio e decisional no partido, ou seja, quanto não iria permitir a Feijóo que, sob qualquer condição mais ou menos justificável (e a não associação ao Vox até seria uma delas), colocasse um pé em ramo verde e assim viesse dificultar o prioritário fim do sanchismo e a sua própria ambição pessoal no novo contexto político a surgir. Sintetizo: uma coisa é Feijóo ser indiscutivelmente um político focado e um democrata moderado (não entrando aqui em apreciações mais qualitativas quanto à dimensão estratégica que o marca nem quanto à sua capacidade negocial ou coragem para arriscar), coisa diversa é olhar para o Feijóo desta circunstância e dele se poderem esperar cambalhotas proclamatórias a um mês das eleições que seguramente poderão traçar o rumo definitivo do seu destino político.