Regresso da oportunidade de um regresso ao Douro e, em especial, ao Côa. Impossível evitar a memória de tempos já bem distantes. Impossível, ainda, evitar o contraste, constatando progressos e adquiridos.
Refiro-me, em primeiro lugar, aos idos de 1995, período em que foi viva a polémica: avançar com a construção pela EDP de uma barragem no vale do Côa ou preservar os achados arqueológicos aí descobertos em 1994? Com a sua proverbial sensibilidade cultural, o primeiro-ministro da época (e atual Presidente da República) manifestava-se “esperançado em que a evolução técnica permita compatibilizar a preservação das gravuras de Foz Côa com uma barragem”, posição que também fazia veicular pelo seu sub-secretário de Estado da Cultura Manuel Frexes enquanto outros membros do seu Governo defendiam a barragem – de Mira Amaral, ministro da Indústria e Energia, a Poças Martins, secretário de Estado do Ambiente e do Consumidor. Ao invés, o Presidente da República de então, Mário Soares, afirmou-se como o grande defensor da cultura e do património (“não deixar submergir as gravuras”, porque "as gravuras não sabem nadar, iô!"), situação que viria a prevalecer após a vitória eleitoral de Guterres e a rápida decisão do seu Governo no sentido de suspender a construção da barragem e de valorizar aquele que viria a ser considerado como “o mais importante sítio com arte rupestre paleolítica de ar livre”: classificação como Monumento Nacional (1997) e como Património da Humanidade da UNESCO (1998).
Refiro-me, em segundo lugar, ao presente, após este fim de semana em que voltei ao local. Onde – para além dos mais de setenta sítios em que mais de mil rochas exibem predominantemente gravuras do Paleolítico Superior (executadas entre 31000 e 10000 anos BP), visitáveis com recurso a guias especializados – pontua agora o belo Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa – um monólito com janelas em frestas, semi-enterrado e com oito metros de altura na vertente virada para o vale do Douro, idealizado por dois jovens arquitetos do Porto, Tiago Pimentel e Camilo Rebelo, e cujas excelentes logística e conteúdos contribuem significativamente para o conhecimento do espólio artístico disponível (através de réplicas das gravuras originais, informação interactiva e mostras de objetos e vestígios diversos). Onde a paixão, a motivação, o profissionalismo e a sabedoria se combinam exemplarmente em tantos atores espalhados pelo terreno e sinteticamente representáveis na dedicação ímpar de um expoente como António Martinho Baptista.
É assim que vir do Côa, hoje, exige denunciar a ignorância e a teimosia, felizmente quase em vias de extinção. Porque se podem ser relevados os erros (?) de interpretação e análise à época – como, por exemplo, os de Constança Cunha e Sá e António Ribeiro Ferreira num “Independente” que falava em “fraude” ao sublinhar que as “gravuras de Foz Côa só têm 100 a 3000 anos” –, o mesmo não sucede com quem persiste em negar evidências – como o acima referido Mira Amaral quando ainda fala de um “disparate” e de um "grupeiro de paleolíticos" ou como Miguel Sousa Tavares quando ainda se refere a “uns tacanhos rabiscos numas pedras”!
Mas, e sobretudo, vir do Côa hoje pressupõe louvar os que acreditaram, os que resistiram, os que decidiram e os que souberam construir. Todos tendo sido parte de um processo cujo mais importante simbolismo reside em nos mostrar a força de possíveis que assentem em causas e na expressão de vontades coletivas. O que não deixa de ser gratificante, e até mesmo estimulante, nos tempos de desânimo que atravessamos...
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