quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

PRIVADO VERSUS PÚBLICO EM MODO TELEVISIVO

Reproduzo parte de uma de várias notícias relativas às declarações atribuídas ao Primeiro-Ministro na noite de 12 de Julho de 2011 (http://aeiou.visao.pt/governo-diz-que-encontrou-um-desvio-colossal-nas-contas-publicas=f612510) e que o rodapé da RTP pontuou conforme a primeira imagem acima: “De acordo com um dos elementos presentes na reunião do Conselho Nacional do PSD, que decorre num hotel de Lisboa, Passos Coelho reiterou que o Executivo não se vai queixar da ‘herança’ do PS, mas não deixou de fazer uma observação sobre o estado das contas públicas portuguesas. Segundo a mesma fonte, o primeiro-ministro e presidente do PSD afirmou que os membros do seu executivo ficaram ‘surpreendidos com o desvio que encontraram em relação ao que o anterior Governo dizia’, acrescentando que se trata de ‘um desvio colossal em relação às metas estabelecidas’".

Menos de dois dias mais tarde, já o rodapé da TVI pontuava conforme a segunda imagem acima as palavras do Ministro das Finanças na Assembleia da República. Que transcrevo: “A expressão ‘desvio colossal’, de acordo com a informação que eu julgo ter sobre o assunto, deve-se a uma – como hei de dizer? – omissão de palavras que foram usadas entre desvio e colossal. Isto é, foi usada a expressão ‘desvio’, foram ditas algumas palavras, após as quais apareceu ‘colossal’, fazendo a eliminação das palavras intermédias fica ‘desvio colossal’. A minha interpretação da frase entre ‘desvio’ e ‘colossal’ é que foram detetados desvios e que a consolidação orçamental nos vai exigir um trabalho colossal. Esta versão é da minha pura responsabilidade, eu não tenho nenhuma informação autêntica sobre as palavras que terão sido proferidas entre ‘desvio’ e ‘colossal’. Mas esta versão agrada-me particularmente.”

Pouco mais de seis meses depois, a UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) da Assembleia da República publicava a sua análise da execução orçamental em 2011. Cito: “[não contabilizando medidas extraordinárias, leia-se a integração dos fundos de pensão da banca,] o défice em 2011 foi superior ao previsto inicialmente no Orçamento do Estado para 2011 em 1893 milhões de euros” e “Para este desvio contribuiu sobretudo a insuficiente execução da receita não fiscal. Também em termos ajustados, a despesa reduziu-se face ao ano anterior e acabou por ficar abaixo da previsão inicial e do estimado no OE/2012, tendo este último desvio (favorável) sido bastante elevado.”

Ou seja, em termos simples:
(i) em relação ao OE/2011 (apresentado por Sócrates, recorde-se), a despesa e a receita executadas em 2011 ficaram, respetivamente, 440 milhões de euros e 2332 milhões de euros abaixo do estimado, o que significa um comportamento melhor do que o esperado em relação à despesa e pior quanto à receita (“não contabilização, no exercício de 2011, da receita prevista com a emissão de licenças 4G”, acrescida de um menor crescimento das contribuições para a Segurança Social e de uma queda na cobrança do IVA);
(ii) alguém arbitrou entre aquela (não) contabilização (e outras, como vendas de património e receitas de concessões), que se estima num montante adiado para 2012 em torno de 750 milhões de euros, e a opção por aplicar uma sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS auferidos no ano de 2011 (vulgo, corte de 50% no subsídio de Natal de 2011);
(iii) o OE/2012 (apresentado em Outubro de 2011 pelo atual Governo) contempla uma estimativa da despesa feita em 2011 superior em mais de 1700 milhões de euros à despesa que agora se veio a verificar como real, assim corporizando o que a UTAO designa por “excesso de prudência” do Governo e se traduz objetivamente numa sobre orçamentação (criação de “almofada”, em linguagem mais direta ao assunto).


Tudo somado, e detalhes dados por irrelevantes (?) de política/técnica orçamental (e seus efeitos económicos e sociais) à parte, sai corroborada a interpretação livre que o Ministro das Finanças realizara (desvio colossal não, desvios sim, trabalho colossal também sim, pura responsabilidade ainda sim). A notícia privada (TVI) revelou-se assim mais eficaz do que a notícia pública (RTP) - sem dúvida que uma razão adicional a fazer pender a balança do poder governativo para a privatização que o ministro Relvas tanto acarinha...

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