terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

UMA CANÇÃO DE AMOR

Recupero hoje um texto que, há já mais de quatro anos, publiquei “a quente” no "Diário Económico" quando soube do suicídio conjunto de Dorine e Gérard Horst. Não tanto porque hoje é – o que quer que isso queira dizer – o “Dia dos Namorados” mas sobretudo porque todas as oportunidades são boas para homenagear o amor…

Numa casa do Nordeste de França para onde se haviam retirado há cerca de vinte anos, suicidaram-se conjuntamente e repousavam lado a lado dois octogenários. Ao carácter sempre chocante de qualquer morte humana, acrescentam estas o perturbador “detalhe” da coerência pessoal e de vida que é fundamento último deste texto.

É que Gérard era o filósofo e jornalista André Gorz, essa figura relevante da intelectualidade europeia das últimas décadas que apontara – naquele que viria a ser o seu último livro, dedicado a uma mulher fragilizada por uma dolorosa doença degenerativa que a acompanhava há quase 60 anos (“Lettre à D. - Histoire d’un amour”, 2006) – “a construção de uma obra cuja visibilidade só leva um nome ao passo que ela foi a de um casal, o fruto de um longo diálogo”.

Estou longe de me sentir suficientemente preparado para analisar e avaliar a dita obra, sobre ela apenas podendo transmitir o testemunho de uma época e o conhecimento decorrente da atenção distante que se lhe seguiu. Assim, começo por sublinhar quanto por cá, nos conturbados mas fascinantes tempos de busca e debate do pós-25 de Abril, Gorz influenciou muitos dos que tacteavam argumentos de resistência ao economicismo e à ortodoxia do marxismo tradicional – primeiro com “Réforme et Révolution” (1969) e “Critique du Capitalisme Quotidien” (1973), quando ainda voltado para um questionamento do modelo de crescimento capitalista e a descoberta de bases e meios para uma alternativa socialista, depois com “Adieux au Prolétariat” (1980) e “Les Chemins du Paradis” (1983), quando já apoiado numa percepção da crescente complexidade das sociedades modernas e centrado numa contestação mais aberta aos dogmas da esquerda reinante.

Para trás tinha ficado, sem que a sua presença essencial se tenha deixado de manter sempre viva, a fase de um marxismo existencialista em que autonomia e consciência (individualismo de valores versus individualismo utilitarista) ocupavam um lugar central na perspectiva de um movimento de desalienação e emancipação colectiva. Em germe estava, então, o pensador de uma ecologia política que passaria a encarar como instrumento determinante da denúncia do potencial auto-destrutivo do sistema capitalista e da necessária transformação radical (que não subversiva) do seu paradigma produtivista. Longe vinha ainda a mais recente atenção à afirmação do “imaterial” e do “cognitivo” e ao possível contributo da sua gratuitidade e funcionamento em rede como resposta inventiva, transgressora e libertadora a um capitalismo em crise.

Dito tudo isto sobre o trajecto intelectual, regressemos à(s) pessoa(s). Isto é, aos sinais de uma vivência em conformidade com princípios e convicções; no trabalho (em “Paris Press”, “L’Express”, “Les Temps Modernes” ou “Le Nouvel Observateur”), na participação cívica (da proximidade com Sartre à de Ivan Illich, do encontro com Mendès France ao comprometimento comunista, da atracção pelo radicalismo italiano à crítica do maoísmo, do abandono do comunismo à descoberta da ecologia) e, sobretudo, nas escolhas íntimas. Falo aqui, nomeadamente, dos mistérios inacessíveis do amor – “o fascínio recíproco de dois sujeitos no que eles têm de menos dizível, de menos socializável, de refractário aos papéis e às imagens de si próprios que a sociedade lhes impõe”. Como quando Gorz (ou, talvez melhor, Gérard) confessa: “Contigo, eu estava fora, num lugar estranho, estranho a mim mesmo”. Ou: “Contigo, eu podia mandar a minha realidade de férias. Tu eras o complemento da irrealização do real”. Ou, ainda: “Porque ele prefere uma pessoa à sociedade, o amor contém todos os germes da subversão”. Ou, por fim: “Falo de pacto para a vida antes mesmo de evocar a ideia de casamento”.

Publicada há um ano (2006), a última carta a D. dizia: “Tu vais fazer oitenta e dois anos. Encolheste seis centímetros, só pesas quarenta e cinco quilos e continuas sempre bela, graciosa e desejável. Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Trago de novo no profundo do meu peito um vazio transbordante que só é preenchido pelo calor do teu corpo contra o meu.” E anunciava o desfecho: “Dissemo-nos que se, mesmo impossível, tivéssemos uma segunda vida, gostaríamos de a passar juntos”. Quem disse que “já não há canções de amor”?

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