Recupero hoje um texto que, há já mais de quatro anos, publiquei “a quente” no "Diário Económico" quando soube do suicídio conjunto de Dorine e Gérard Horst. Não tanto porque hoje é – o que quer que isso queira dizer – o “Dia dos Namorados” mas sobretudo porque todas as oportunidades são boas para homenagear o amor…
Numa casa do Nordeste de França para onde se haviam retirado há cerca de vinte anos, suicidaram-se conjuntamente e repousavam lado a lado dois octogenários. Ao carácter sempre chocante de qualquer morte humana, acrescentam estas o perturbador “detalhe” da coerência pessoal e de vida que é fundamento último deste texto.
É que Gérard era o filósofo e jornalista André Gorz, essa figura relevante da intelectualidade europeia das últimas décadas que apontara – naquele que viria a ser o seu último livro, dedicado a uma mulher fragilizada por uma dolorosa doença degenerativa que a acompanhava há quase 60 anos (“Lettre à D. - Histoire d’un amour”, 2006) – “a construção de uma obra cuja visibilidade só leva um nome ao passo que ela foi a de um casal, o fruto de um longo diálogo”.
Estou longe de me sentir suficientemente preparado para analisar e avaliar a dita obra, sobre ela apenas podendo transmitir o testemunho de uma época e o conhecimento decorrente da atenção distante que se lhe seguiu. Assim, começo por sublinhar quanto por cá, nos conturbados mas fascinantes tempos de busca e debate do pós-25 de Abril, Gorz influenciou muitos dos que tacteavam argumentos de resistência ao economicismo e à ortodoxia do marxismo tradicional – primeiro com “Réforme et Révolution” (1969) e “Critique du Capitalisme Quotidien” (1973), quando ainda voltado para um questionamento do modelo de crescimento capitalista e a descoberta de bases e meios para uma alternativa socialista, depois com “Adieux au Prolétariat” (1980) e “Les Chemins du Paradis” (1983), quando já apoiado numa percepção da crescente complexidade das sociedades modernas e centrado numa contestação mais aberta aos dogmas da esquerda reinante.
Para trás tinha ficado, sem que a sua presença essencial se tenha deixado de manter sempre viva, a fase de um marxismo existencialista em que autonomia e consciência (individualismo de valores versus individualismo utilitarista) ocupavam um lugar central na perspectiva de um movimento de desalienação e emancipação colectiva. Em germe estava, então, o pensador de uma ecologia política que passaria a encarar como instrumento determinante da denúncia do potencial auto-destrutivo do sistema capitalista e da necessária transformação radical (que não subversiva) do seu paradigma produtivista. Longe vinha ainda a mais recente atenção à afirmação do “imaterial” e do “cognitivo” e ao possível contributo da sua gratuitidade e funcionamento em rede como resposta inventiva, transgressora e libertadora a um capitalismo em crise.
Dito tudo isto sobre o trajecto intelectual, regressemos à(s) pessoa(s). Isto é, aos sinais de uma vivência em conformidade com princípios e convicções; no trabalho (em “Paris Press”, “L’Express”, “Les Temps Modernes” ou “Le Nouvel Observateur”), na participação cívica (da proximidade com Sartre à de Ivan Illich, do encontro com Mendès France ao comprometimento comunista, da atracção pelo radicalismo italiano à crítica do maoísmo, do abandono do comunismo à descoberta da ecologia) e, sobretudo, nas escolhas íntimas. Falo aqui, nomeadamente, dos mistérios inacessíveis do amor – “o fascínio recíproco de dois sujeitos no que eles têm de menos dizível, de menos socializável, de refractário aos papéis e às imagens de si próprios que a sociedade lhes impõe”. Como quando Gorz (ou, talvez melhor, Gérard) confessa: “Contigo, eu estava fora, num lugar estranho, estranho a mim mesmo”. Ou: “Contigo, eu podia mandar a minha realidade de férias. Tu eras o complemento da irrealização do real”. Ou, ainda: “Porque ele prefere uma pessoa à sociedade, o amor contém todos os germes da subversão”. Ou, por fim: “Falo de pacto para a vida antes mesmo de evocar a ideia de casamento”.
Publicada há um ano (2006), a última carta a D. dizia: “Tu vais fazer oitenta e dois anos. Encolheste seis centímetros, só pesas quarenta e cinco quilos e continuas sempre bela, graciosa e desejável. Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Trago de novo no profundo do meu peito um vazio transbordante que só é preenchido pelo calor do teu corpo contra o meu.” E anunciava o desfecho: “Dissemo-nos que se, mesmo impossível, tivéssemos uma segunda vida, gostaríamos de a passar juntos”. Quem disse que “já não há canções de amor”?
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