sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

MORREU UM POETA


“O acto de criação é de natureza obscura; nele é impossível destrinçar o que é da razão e o que é do instinto, o que é do mundo e o que é da terra. Nunca nenhum dualismo serviu bem o poeta. Esse “pastor do Ser”, na tão bela expressão de Heidegger, é, como nenhum outro homem, nostálgico de uma antiga unidade”.
Eugénio de Andrade in Rosto Precário

Esse pastor do Ser, nostálgico de uma antiga unidade em que as ciências e as artes concorriam para uma cosmogonia a que a poesia conferia sentido. Estou a falar de Fernando Lanhas. Nele se cruzaram de modo inquieto muitas artes e saberes que se contaminavam de modo criativo.
“O brinquedo é o mundo por onde começamos” sabiamente dizia o Arq. Lanhas, a primeira pessoa a quem ouvir falar deste tema. Conhecia, estudava e coleccionava gerações de brinquedos e dos seus criadores e produtores a que correspondiam gerações da gente. Porque brincar é a coisa mais séria do mundo e isso bastava para que fosse um assunto a prender-lhe a atenção.
A figura do Arq. Lanhas, não sei bem porquê, sempre me lembra Monsieur Hulot, a personagem inconfundível criada e representada por Jacques Tati, talvez as calças amuadas com os sapatos, talvez a figura franzina, os olhos vivos, o mesmo carácter generoso, ou o mesmo ar deslocado nas situações mais convencionais.
Recomendo, a propósito, uma revisita aos filmes de Tati cineasta-poeta na melhor tradição de Chaplin, a abordarem, não por acaso, os mesmos temas do homem e da sociedade: Vida Moderna(Tati) eTempos Modernos (Chaplin) são apenas um exemplo óbvio. E já agora, se não viram, “O Mágico”, filme de animação do francês Sylvain Chomet, baseado num argumento de Jacques Tati.
“A evolução do cosmos, da Terra, das espécies e do Homem, as representações do tempo e do espaço, as distâncias e grandezas cósmicas dominam os interesses de um homem que não se identifica como artista e se diz “talvez meio cientista, meio filósofo”. (Alexandre Pomar, Expresso - Cartaz, 21 de Abril).
“A obra de Fernando Lanhas explora a pintura não-figurativa como meio de transformação e apropriação da realidade” (da biografia de FL que se encontra no site do CAM da Fundação Calouste Gulbenkian).
A curiosidade infinda que, se não fosse deslustroso diria mesmo infantil, levou-o interrogar a longa história do Universo, da Terra e do Homem e a tocar o infinito: “Sonhei toda a noite com a representação gráfica da evolução do nosso Universo” S149, 1984.
Ó Zé Portugal, com o que é que você sonhou esta noite? Perguntava-me ele com um ar natural e curioso, bloco de apontamentos em riste. O registo dos sonhos, seus e alheios, era uma das suas actividades que cultivava empenhadamente.
Sonhei que sabia tudo, que alcançara o conhecimento das coisas, da razão de ser” S42 (Sonho 42), 1973.
O Tempo e o Espaço eram duas dimensões centrais às suas interrogações sobre a Vida e que presidiam à sua produção artística, intelectual, científica, de Homem renascentista de sete ofícios.
“Olhar um plano de cronologia não é pensar os acontecimentos, registar as datas, as descobertas. Há um significado a entender, o porquê do Homem tanto querer saber as coisas” escrevia no preâmbulo do Mundo da Geologia, ed. Faculdade de Ciências do Porto.
Escreve ele ainda nesta publicação: “Sobre a explicação das formas orgânicas achadas nas rochas, houve desde o século quinze até meados do século dezoito, contrárias opiniões. Alguns seguiam a crença de uma virtude plástica das rochas de produzirem no seu interior, e de uma forma espontânea, aqueles vestígios petrificados. Outros concluíam que esses vestígios eram os restos mais resistentes dos animais, retidos nas rochas e que, com o tempo, haviam petrificado.
Um filósofo grego, de nome Xenófanes, interpretava correctamente, quinhentos anos antes de Cristo, a ocorrência dos fósseis, com as mais notáveis deduções.
Leonardo da Vinci defrontou nos primeiros anos do século XVI a teima dos doutores da ciência da época, que diziam ser os fósseis coisa produzida pelas próprias rochas. Mas Leonardo era um génio que pensava.”
Alexandre Pomar, num excelente artigo sobre a exposição de 2001 em Serralves: no Expresso - Cartaz, 21 de Abril, descreve o carácter extraordinário e inusitado (para alguém que não conhecesse o autor) da exposição:
“Na sala central do Museu de Serralves as últimas pinturas de Lanhas coexistem com vitrinas de trilobites e meteoritos. Numa parede lê-se “Sonhei esta noite com trilobites vivas (…) Em certo momento vi uma trilobite grande, de cor dourada, que estava mutilada nas pleuras. Peguei na trilobite sem qualquer receio, para a ajudar. Era uma trilobite muito sossegada e meiga. As crianças até lhe faziam festas” S322A, 1992.
Dois mapas assinalam os principais meteoros e meteoritos caídos em Portugal e a trajectória de um meteoro observado em 1984. Uma representação da “Noção da grandeza do tempo” e um “Mapa das ocorrências verificadas no Universo desde a explosão inicial” expõem-se na mesma galeria.
Adiante encontramos o “Estudo do quadro geral do Universo”, a “Carta das distâncias entre o sol e algumas estrelas” um herbário com variações morfológicas de folhas de hera ou um aspecto da Praia da Luz tal como seria observada pelo “Homo sapiens”, 18 mil anos a.C.”
Numa visita que fiz há uns anos largos à Biblioteca-Museu Municipal de Paredes, cuja remodelação tinha sido projectada pelo Arq. Lanhas, a guarda que me ia abrindo as portas e acendendo as luzes, conduziu-me a uma sala e fez-me uma advertência solene à entrada “vai ver uma coisa muito importante”. Dá a volta à sala a fechar as portadas das janelas e a penumbra faz sobressair do meio da sala um poço donde jorra uma luz azulada. Sou finalmente convidado a avançar e vejo que no poço estava representado o sistema solar com as órbitas dos vários planetas que giravam à volta do astro-rei. Tudo feito à escala, do tamanho dos astros à dimensão e desenho das órbitas. Só que o sistema estaria a necessitar de manutenção já que Mercúrio e Plutão se tinham juntado lá no fundo do poço porque as órbitas tinham partido, recriando assim, descontraidamente, os equilíbrios cósmicos conhecidos.
“Sonhei com um estudo para pintura. A composição teria por base a letra N, em que se verificava uma inclinação para o lado direito (…)” S45, 1973.
“Sonhei com manchas de cor azul, castanha e cinza”. S13,1963.
Tudo isto para dizer que Fernando Lanhas não foi só (!) o pioneiro da abstracção geométrica em Portugal, como foi abundantemente noticiado por estes dias.
À imagem de Almada Negreiros, que se dizia POETA D'ORPHEU FUTURISTA e TUDO, poderemos dizer, sem exagerar, Fernando Lanhas, ARQUITECTO, PINTOR, ARQUEÓLOGO, ETNÓGRAFO, ASTRÓNOMO, GEÓLOGO, MUSEÓLOGO, POETA E TUDO.

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